Violante
Andrade. Xabregas, 20 de Janeiro, 1544
«(…)
Não esqueço as rimas que me segreda ao ouvido, enquanto os nossos corpos,
endoidecidos, dançam perdidos entre vales luminosos e setas incendiárias:
A violeta
mais bela que amanhece
no vale, por esmalte da verdura,
com seu pálido lustre e
fermosura,
por mais bela, Violante, te
obedece.
Diz-me ele que é minha a culpa;
que sou eu a violeta mais bela que amanhece e eu a poesia de que ele é poeta.
Cuidava eu que aquele fogo era fugaz, impermanente. Iludia-me. Quando se
escapuliu do meu leito, os lençóis guardaram a forma do seu corpo, tomados pelo
venenoso sabor da eternidade. Soube-o meu para sempre e, ainda que ousasse
morrer, teria de o matar de novo para que não persistisse, para que não
perdurasse. Até lá tê-lo-ia tão-só por perto, qual capricho ou devaneio, para o
saborear a meu bel-prazer. E assim fiz uma e outra vez, correndo sérios
perigos. Mas que gozo posso eu tirar de uma vida sem perigo? Comecei depois a
exigi-lo só para mim. Doía-me o tempo que dava a Antoninho, amofinavam-me os
olhares deleitosos que lhe lançava Joaninha, enlouquecia-me o tempo que não era
meu. O tempo é sempre o que mais me foge e mais partidas me prega: alturas há em
que o tempo é líquido, longo e sem sobressaltos, outras em que se torna
esquivo, imaterial, sem que o consiga prender. Passei a seguir Luís Vaz por
toda a parte, a procurá-lo, a impor-lhe a minha presença. Insisto, até para que
me ouça a mim mesma: não se trata de amor mas tão-só de desejo; são coisas bem
distintas. E o desejo comanda-me. Por isso meço forças comigo: ou eu ou o
desejo. Algum dos dois vai ter de morrer. Serei eu. Fui à missa na igreja das
Chagas com essa chaga ir morder-me a pele e a alma. Podia perder tudo: a minha honra,
a minha fidalguia, as minhas posses, mas nunca perderia de vista o que queria.
Que ninguém ousasse desafiar-me, que ninguém se cruzasse comigo na minha demanda,
nem mesmo os meus filhos. Decidi morrer para fazer que vivessem, ilesos, os
meus sentidos. Terá agora o poeta pela frente uma desvairada luta com o animal indomável
que sou: o que junta a paixão ao ódio, a volúpia à raiva, e sensibilidade à cólera.
Assim sou, assim Deus e a vida me fizeram.
Catarina
Ataíde. Igreja das Chagas, Sexta-feira Santa, 16 de Março, 1544
Não sou de grandes falas, nem de
mostrar o que sinto. Mas um desusado enlevo de alma acometeu-me esta
Sexta-Feira Santa, aquando da cerimónia da paixão e morte de Cristo, na igreja das
Chagas. Ia cansada de subir toda aquela colina, gozando a companhia do meu
querido amigo António Ribeiro, a quem todos chamam Chiado e com quem me
havia cruzado na rua. Ser-se jocoso e descarado na Quaresma é coisa contrária
ao preceito, ao decoro e à devoção, mas tão bem me dispõe o Chiado,
sempre amável e lisonjeiro, sempre com uma palavra perfumada para atirar às
donzelas, que não houve como esquivar-me: sabeis o que são beijos tristes?
Quereis que vos diga? Senhora, sois tão bela, sois pequena de corpo e engraçada
por natureza! Aceitai esta jóia. Insistia, entregando-me, por jóia, mais uma
das suas rimas. É certo que a minha condição de dama da rainha dona Catarina e
a solenidade da Quaresma não me permitiam a réplica, nem eu me dou a esses
motes, mas sorri. Sou por natureza reservada e até tímida, e fui ensinada a nunca
mostrar qualquer sentimento, mas sorri. Acresce que ao empurrar a porta lateral
por onde nós, damas da Corte, usamos entrar, notei que alguém se adiantara e me
segurava a porta, permitindo-me a passagem». In Maria João Lopo Carvalho,
Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
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