«(…) Como já era de esperar, o inglês Hervey de Glanville e o
seu prelado Gilbert de Hastings puseram-se ao lado dos portugueses. E no fim
todos concordaram em navegar até Lusbuna, pois qual era o mal em ouvir o que
Afonso Henriques tinha para lhes oferecer? Levantavam-se as amarras. Todas as
naus transportavam agora mais passageiros, incluindo o arcebispo e os três
bispos. Konrad apercebia-se preocupado
de quantos portugueses, a maior parte deles camponeses e pescadores, que não
entendiam nada de combate nem sequer possuíam armas, tencionavam participar no
cerco de Lusbuna, como se este fosse assunto já decidido. Tolerava-se a
presença de mulheres, como era aliás costume em campanhas militares, pois elas
contribuíam para manter a boa-disposição entre os guerreiros. Só Johann teimava
em não aparecer! Onde diabo se meteu esse danado?, perguntava-se Konrad
desesperado. Confesso que também estou preocupado, replicou Hadwig. O nosso
barco está quase a partir. Konrad começou a reunir as suas coisas e as do irmão
e o amigo perguntou-lhe espantado: o que te deu agora? Não posso deixar o miúdo
aqui sozinho. Hadwig escancarou os olhos azuis: e arriscas-te a ficares aqui
também? Só o tempo que levar a encontrá-lo. Está de certeza no bordel, a
divertir-se com a rameirita e nem se dá conta do passar do tempo. Assim que o
arrancar de lá, dar-lhe-ei uma boa sova. E depois fazemo-nos ao caminho, em
direcção a essa..., Lusbuna. Vós os dois sozinhos?
Não
nos perderemos, afinal só precisamos de seguir ao longo da costa. Duzentas
milhas são, para dois homens, cerca de uma semana de marcha, no máximo dez
dias. Como vós ireis ficar algum tempo por lá para negociardes com o rei, nós
lá vos apanharemos. Deus queira que sim... Nisto, Gunther bradou: lá vem ele! Konrad
virou a cabeça. E não queria acreditar no que os seus olhos viam: Johann vinha
numa correria e pela mão trazia..., a rameirita, que transportava uma pequena
trouxa! Os dois saltaram a bordo, mesmo antes do barco se descolar do cais. Que
significa isto?, berrou Konrad, mal conseguindo controlar a sua fúria. Ela vem
comigo, respondeu Johann ofegante. Isso vejo eu. Então porque perguntas? Konrad
forçou-se a manter a calma e replicou: não hão-de faltar rameiras rapaz! Para
que é que hás-de levar uma? A partir de hoje, ela já não o é. Como? Vou casar
com ela! Konrad precisou de algum tempo para recuperar do seu estarrecer, mas depois vociferou: enlouqueceste
frangalhote? Como se eu fosse permitir uma coisa dessas! E quem precisa da tua
autorização?, berrou Johann. Estou farto de fazer o que tu me mandas. Não sabes
o que dizes. Era o que mais me faltava, ir com uma rameira às... Nunca mais a
chames assim! A pele clara de Johann enrubesceu até à raiz dos cabelos, as suas
mãos cerraram-se em punhos. Ela tem um nome: Ausenda. E é minha noiva! Seu
danado!, rugiu Konrad, lançando-se ao irmão. Já te vou ensinar a... Tem calma,
homem! Hadwig e Gunther agarraram-no pelos braços e separaram-no do mais novo.
Johann pegou na mão de Ausenda e levou-a para o canto onde tinha a manta. Não
dá para acreditar!, fungou Konrad. Para que te hás-de exaltar dessa maneira?,
retorquiu Gunther. Verás como o miúdo se enche dela num instante.
O
mês de Junho aproximava-se do fim e Aischa ainda não casara com Amir. A
cerimónia fora adiada, pois a mãe dela jazia moribunda. Zubaida comera cada vez
menos, até que chegou a uma altura em que só ingeria líquidos. Os médicos,
estupefactos, admitiam que ela sofresse de uma doença misteriosa. Depois de uma
semana inteira a prescindir de alimentos, Zubaida apanhou febre e o seu
organismo estava fraco demais para a combater. Agora, esperava-se pelo seu último
suspiro. Este parecia próximo quando um ataque febril se apoderou do corpo
mirrado, mas Zubaida lá se acalmou e adormeceu por algumas horas. Ao acordar,
anunciou que o seu último desejo era uma conversa a sós com a filha. Aischa, só
por tua causa me custa deixar este mundo. De resto, anseio pela redenção. E sei
que irei direita a Deus. Não fales assim! Fazes-me recear pela tua alma. Não
receies! Deus Nosso Senhor prometeu-me que me levaria para junto Dele.
Apareceu-me em sonho e revelou-me muita coisa. Que estás para aí a dizer? Eu
disse-Lhe que não aguentava mais esta minha vida, mas que por outro lado
pretendia evitar manchar-me com o pecado do suicídio. Ele aconselhou-me então a
recusar os alimentos e a viver em ascese, como muitos dos nossos santos.
Oh
será possível? Pedi-Lhe que tomasse conta de ti, mesmo depois dos cristãos
terem conquistado Lusbuna. E sabes o que Ele me disse? Assegurou-me que
sobreviverias ao cerco e que encontrarias um cavaleiro cristão do teu agrado! Não
quero ouvir mais nada! Casarei com Amir e manter-me-ei fiel à fé verdadeira! Viverás
o teu futuro ao lado de um cristão, minha filha. El-rei Afonso Henriques
manter-vos-á sob a sua protecção. El-rei?! Esse homem horrível, Alá o maldiga!
Endoideceste, mãe! Desculpa que o diga nestas circunstâncias, mas acho que a
tua doença te roubou o discernimento. Eu falei com Deus, insistiu Zubaida. Não
há outro Deus a não ser Alá e Maomé é o seu
profeta! A moribunda fechou os olhos. Depois de um breve silêncio, tornou a
abri-los e disse: Estou orgulhosa de ti, minha filha. Guardaste o nosso
segredo. Mas irei revelá-lo». In Cristina
Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT