«(…) Era a noite, a noite obscura,
as trevas espessas, o pó ardente, a estrela cadente, era a noite, cântico da
tarde, o meu coração elevou-se, era a noite e deixara de buscar, deixara de fugir,
já não estava mergulhado no medo da noite, já não tinha medo do escuro, medo de
mim, já não estava só, pó ardente, pó de fogo, terra que volve a terra, era a noite
e, alma misteriosa, eu era. O solo tremeu, vacilou e eu morrera, todas as fundações
do meu coração desabaram, o passado já não existia, compreendeis, já não havia
nada, a minha vida já não era, pois estava no extremo limite. Levantei os véus,
ergui os braços, procurando o fim, mas não havia limites para o que podia sentir.
Era omnisciente, era presente, era infinitamente, era, por fim. Do fundo do meu
túmulo de pedra, era vivo, era e não era, renascendo. Era como se me aparecesse
a inteligência total, súbita e, contudo, já não tinha alma, já não havia eu,
não havia mais nada. Era louco, sim, era louco, a exultação rasgava-me o coração,
furava-me a alma. Tudo era vazio à minha volta, a percepção de mim próprio também,
pois eu também era vazio e pleno. Pleno de mim, não, pois já não havia eu, já não
havia nada no mundo. O sentido da minha busca estava ali, diante de mim, surgiu-me
nessa noite obscura e era o fim da ansiedade e do medo, assim seja.
Oh meus amigos, se soubésseis! A minha
língua bifurcara-se, a letra não veio e, depois do Yod, do He, e do Vau, voltei-me
para Jane no momento de a dizer, mas esta alongou-se misteriosamente e tornou-se
Nun. E disse: Yonan, Jane. E, de repente, foi uma evidência: eu não queria encontrar
Deus, queria encontrar aquela que tinha o nome Jane. Queria amá-la como se ama
Deus, pois é assim que amamos. Desde que nos encontráramos, ela procurara-me e,
depois, eu seguira-a e perdera-a, julgando encontrar Deus, quando era ela que
desejava, com todo o meu ser e a minha alma, com toda a minha vontade e todo o meu
poder. Mas a mulher que eu amava estava ali, atrás de mim, e foi por isso que cedi
ao apelo do seu nome e ele me acudiu aos lábios: Jane.
Eu e Jane fomo-nos embora, unidos
nessa noite, na Jerusalém adormecida depois dos combates da véspera. Sós. Estávamos
longe de todos. Abracei-a e dei-lhe um beijo de amor, ela também, e as nossas
respirações misturaram-se, os nossos corpos tocaram-se numa grande carícia,
assim seja. Amei-a na sua verdade, na sua doçura, na sua carne, no seu espírito.
Pelos meus olhares ela estava presente, pelos seus olhares eu estava
consciente, nascia, ela vinha a vida e descobri que a existência é amor. E disse-lhe:
que o Eterno te guarde do seu lado direito. Assim, de dia não serás queimada
pelo ardor do Sol e de noite não ficarás exposta à frescura da Lua.
No dia seguinte os sinos tocaram em
Jerusalém e eu dormia. Não havia ninguém ao meu lado. Teria sonhado? Já lá não estava
o seu rosto fino de maçãs altivas, os seus olhos escuros e os seus cabelos
louros que o sono mal despenteara, a sua boca de lábios escarlates, já lá não
estava o sorriso de Jane, nem os seus olhos, nos quais via o reflexo do meu próprio
rosto e nos quais me amei a mim próprio, no acto do amor. Eu tinha uma barba curta,
pouco abundante, que escondia as elevadas maçãs do meu rosto, uma boca de lábios
finos e olhos azuis circundados por lentes redondas. Os meus músculos viam-se bem
sob a minha pele, pois tinha jejuado muito aquando do meu regresso à religião e
eu era belo e fino no reflexo dos seus olhos, eu amava-me através do seu olhar.
Queria tomá-la nos meus braços, queria envolvê-la no meu abraço, mas já não
havia ninguém; apenas a aura do Sol nos lençóis brancos, apenas a sua luz sobre
a Jerusalém febril, apenas a janela entreaberta por onde a brisa entrava suavemente,
mas a minha amiga desaparecera!» In Eliette Abécassis, A Última Tribo, 2004,
Editora Livros do Brasil, colecção Suores Frios, 2005, ISBN 972-382-763-8.
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