«(…)
A dona Generosa deve ter achado que a Raquel era um presente dos deuses que lhe
caiu no colo bem a propósito. Providencial. E rica, ainda por cima. Única
herdeira de uma bela fortuna. Lá pelos dezoito anos dela achou-se conveniente
fazer obras na casa dos pais que estava fechada desde a morte deles, e a Raquel
mudou-se para lá, porque não ficava bem morar em casa do noivo. O desvelo com
que a minha mãe se envolveu naquelas obras! Era lógico, na cabeça dela, que eu
iria morar para aquele palacete e cuidou de tudo para que não me faltasse
nenhum dos requintes de conforto que ela entendia que me eram necessários. Foi
quando vi a casa pronta, isto é, quando lá entrei pela primeira vez, porque
nunca me tinha interessado minimamente pelas ditas obras, já que a casa não me
pertencia, que tive uma tomada de consciência e percebi que jamais iria viver
com a Raquel e muito menos em casa dela. Fiz-me de sonso. Deixei-a instalar-se
e comecei a procurar um apartamento para mim. O ordenado do colégio onde
precisamente tinha começado a dar aulas chegava para um andarzinho modesto.
Só
tive o meu pai a apoiar-me. Deve ter achado que era de homem não ficar atido à
casa da noiva, rica, ainda por cima. Sim, eu era cobarde. Reconheço que era,
que sou cobarde. Desenhava miniaturas, com vergonha de me expôr. Parecia que a
timidez de um desenho pequenino escondia o essencial do desenho. Uma forma
subjectiva de prolongar a adolescência. Tudo em ponto pequeno. Só um
desenhozinho. Uma brincadeira. E dizem que desenho bem. Já me convidaram para
expor mas nunca aceitei porque todos iam perceber quem eu sou, um homem à
procura de palavras jamais encontradas hidranja, plátano, arrabil, phisalis, um
homem escondido atrás de si próprio, da mãe autoritária, da noiva feia.
Porque
se a Raquel não fosse feia não se agarrava a mim como uma lapa. Não se
acomodava de boa vontade àquele arranjinho contranatura, tomando logo de
entrada as rédeas de um casamento infeliz. E eu, cobarde, a sujeitar-me
tacitamente para dar uma satisfação à minha mãe, às amigas da minha mãe, que
história de amor tão engraçada, Generosa, desde miúdos, há coisas que parece
que estão escritas, e eu, mas quem é a Raquel? Uma máscara para sair à rua e
dar satisfação à sociedade? E aqueles anos todos da adolescência à procura de
mim, na angústia de perceber quem sou, a olhar os rapazes mais velhos às
escondidas, a sentir-me diferente, a ter sonhos eróticos com as mãos do Tinito,
a fingir conversas machas com os colegas, em busca da minha alma trocada. Cobarde.
A
evitar a todo o custo os que me pareciam semelhantes a mim. Com um desejo doido
de trocar sentimentos, descobertas, mágoas, desesperos. Mas o silêncio. Sempre.
A comer-me por dentro. E a agonia de pensar na Raquel como um castigo, o
caminho, quem sabe, do suicídio. Entretanto a vida de todos os dias. Os anos
lectivos a passarem. As boas notas. Os prémios. O curso. O colégio. As aulas já
como professor. Considerado. Estimado. O professor Teófilo de Francês. Tão
simpático. Competente. Pontual. Incapaz de grandes camaradagens, mas acessível
quando é preciso. Tentando, contudo, evitar proximidade com aqueles em quem
julga pressentir problemas idênticos ao seu. É isso que será sempre até à
reforma. O professor Teófilo de Francês. Qualquer dia casado. Casa colégio,
colégio casa. Os pontos para corrigir. Uma boa gabardina, botas de sola de
borracha, porque se desloca para o trabalho a pé. Tudo previsto, organizado.
Algumas miniaturas. Pastas e pastas delas, para dizer a verdade. Um romance
inacabado que ninguém pode ler. Não tem filhos, é claro. Não quer ter filhos.
Não consegue abordar a Raquel. Ela não se queixa.
Terminada
a licenciatura irá trabalhar até à reforma sabe-se lá aonde. Terá a sua vida,
quem sabe um amante. Tudo como manda o figurino da hipocrisia social. Fica
muitas vezes na própria casa, no palacete. É rica. Ainda bem. Não precisa dele
para nada. Para nada mesmo. A não ser para a fachada de dizer o meu marido.
Soa-lhe bem, o meu marido. O meu marido precisa de ficar a sós no apartamento
para se concentrar no trabalho dele. É romancista. E está também a preparar uma
exposição de miniaturas. É um artista. Não conta às amigas que eu nunca dormi
no palacete. Que nunca me deitei com ela. Que nunca tomámos o pequeno-almoço
juntos. Que nunca comemos croissants quentinhos no café da esquina da rua, com
compota deliciosa de maçã. Que coisa aterradora esta antevisão da minha vida possível!»
In
Rosa Lobato Faria, A Alma Trocada, Edições ASA, Autores Contemporâneos de
Língua Portuguesa, Porto, 1a edição, 2007, ISBN 978-972-415-283-7.
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