quarta-feira, 8 de novembro de 2017

A Alma Trocada. Rosa Lobato Faria. «Porque se a Raquel não fosse feia não se agarrava a mim como uma lapa. Não se acomodava de boa vontade àquele arranjinho contranatura…»



Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A dona Generosa deve ter achado que a Raquel era um presente dos deuses que lhe caiu no colo bem a propósito. Providencial. E rica, ainda por cima. Única herdeira de uma bela fortuna. Lá pelos dezoito anos dela achou-se conveniente fazer obras na casa dos pais que estava fechada desde a morte deles, e a Raquel mudou-se para lá, porque não ficava bem morar em casa do noivo. O desvelo com que a minha mãe se envolveu naquelas obras! Era lógico, na cabeça dela, que eu iria morar para aquele palacete e cuidou de tudo para que não me faltasse nenhum dos requintes de conforto que ela entendia que me eram necessários. Foi quando vi a casa pronta, isto é, quando lá entrei pela primeira vez, porque nunca me tinha interessado minimamente pelas ditas obras, já que a casa não me pertencia, que tive uma tomada de consciência e percebi que jamais iria viver com a Raquel e muito menos em casa dela. Fiz-me de sonso. Deixei-a instalar-se e comecei a procurar um apartamento para mim. O ordenado do colégio onde precisamente tinha começado a dar aulas chegava para um andarzinho modesto.
Só tive o meu pai a apoiar-me. Deve ter achado que era de homem não ficar atido à casa da noiva, rica, ainda por cima. Sim, eu era cobarde. Reconheço que era, que sou cobarde. Desenhava miniaturas, com vergonha de me expôr. Parecia que a timidez de um desenho pequenino escondia o essencial do desenho. Uma forma subjectiva de prolongar a adolescência. Tudo em ponto pequeno. Só um desenhozinho. Uma brincadeira. E dizem que desenho bem. Já me convidaram para expor mas nunca aceitei porque todos iam perceber quem eu sou, um homem à procura de palavras jamais encontradas hidranja, plátano, arrabil, phisalis, um homem escondido atrás de si próprio, da mãe autoritária, da noiva feia.
Porque se a Raquel não fosse feia não se agarrava a mim como uma lapa. Não se acomodava de boa vontade àquele arranjinho contranatura, tomando logo de entrada as rédeas de um casamento infeliz. E eu, cobarde, a sujeitar-me tacitamente para dar uma satisfação à minha mãe, às amigas da minha mãe, que história de amor tão engraçada, Generosa, desde miúdos, há coisas que parece que estão escritas, e eu, mas quem é a Raquel? Uma máscara para sair à rua e dar satisfação à sociedade? E aqueles anos todos da adolescência à procura de mim, na angústia de perceber quem sou, a olhar os rapazes mais velhos às escondidas, a sentir-me diferente, a ter sonhos eróticos com as mãos do Tinito, a fingir conversas machas com os colegas, em busca da minha alma trocada. Cobarde.
A evitar a todo o custo os que me pareciam semelhantes a mim. Com um desejo doido de trocar sentimentos, descobertas, mágoas, desesperos. Mas o silêncio. Sempre. A comer-me por dentro. E a agonia de pensar na Raquel como um castigo, o caminho, quem sabe, do suicídio. Entretanto a vida de todos os dias. Os anos lectivos a passarem. As boas notas. Os prémios. O curso. O colégio. As aulas já como professor. Considerado. Estimado. O professor Teófilo de Francês. Tão simpático. Competente. Pontual. Incapaz de grandes camaradagens, mas acessível quando é preciso. Tentando, contudo, evitar proximidade com aqueles em quem julga pressentir problemas idênticos ao seu. É isso que será sempre até à reforma. O professor Teófilo de Francês. Qualquer dia casado. Casa colégio, colégio casa. Os pontos para corrigir. Uma boa gabardina, botas de sola de borracha, porque se desloca para o trabalho a pé. Tudo previsto, organizado. Algumas miniaturas. Pastas e pastas delas, para dizer a verdade. Um romance inacabado que ninguém pode ler. Não tem filhos, é claro. Não quer ter filhos. Não consegue abordar a Raquel. Ela não se queixa.
Terminada a licenciatura irá trabalhar até à reforma sabe-se lá aonde. Terá a sua vida, quem sabe um amante. Tudo como manda o figurino da hipocrisia social. Fica muitas vezes na própria casa, no palacete. É rica. Ainda bem. Não precisa dele para nada. Para nada mesmo. A não ser para a fachada de dizer o meu marido. Soa-lhe bem, o meu marido. O meu marido precisa de ficar a sós no apartamento para se concentrar no trabalho dele. É romancista. E está também a preparar uma exposição de miniaturas. É um artista. Não conta às amigas que eu nunca dormi no palacete. Que nunca me deitei com ela. Que nunca tomámos o pequeno-almoço juntos. Que nunca comemos croissants quentinhos no café da esquina da rua, com compota deliciosa de maçã. Que coisa aterradora esta antevisão da minha vida possível!» In Rosa Lobato Faria, A Alma Trocada, Edições ASA, Autores Contemporâneos de Língua Portuguesa, Porto, 1a edição, 2007, ISBN 978-972-415-283-7.

Cortesia de ASA/JDACT