domingo, 19 de novembro de 2017

Singularidades de uma Rapariga Loura. Eça de Queirós. «Nessa tarde Macário achava-se no quarto de uma hospedaria da Praça da Figueira com seis peças, o seu baú de roupa branca e a sua paixão»

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«(…) Macário contou-me o que o determinara mais precisamente àquela resolução profunda e perpétua. Foi um beijo. Mas esse caso, casto e simples, eu colo-o, mesmo porque a única testemunha foi uma imagem em gravura da Virgem, que estava pendurada no seu caixilho de pau-preto, na saleta escura que abria para a escada... Um beijo fugitivo, superficial, efémero. Mas isso bastou ao espírito recto e severo para o obrigar a tomá-la como esposa, a dar-lhe uma fé imutável e a posse da sua vida. Tais foram os seus esponsais. Aquela simpática sombra de janelas vizinhas tornara-se para ele um destino, o fim moral da sua vida e toda a ideia dominante do seu trabalho. E esta história toma, desde logo, um alto carácter de santidade e de tristeza. Macário falou-me muito do carácter e da figura do tio Francisco; a sua possante estatura, os seus óculos de ouro, a sua barba grisalha, em colar, por baixo do queixo, um tique nervoso que tinha numa asa do nariz, a dureza da sua voz, a sua austera e majestosa tranquilidade, os seus princípios antigos, autoritários e tirânicos e a brevidade telegráfica das suas palavras.
Quando Macário lhe disse, uma manhã, ao almoço, abruptamente, sem transições emolientes: peço-lhe licença para casar, o tio Francisco, que deitava o açúcar no seu café, ficou calado, remexendo com a colher, devagar, majestoso e terrível: e quando acabou de solver pelo pires, com grande ruído, tirou do pescoço o guardanapo, dobrou-o, aguçou com a faca o seu palito, meteu-o na boca e saiu: mas à porta da sala parou, e voltando-se para Macário, que estava de pé, junto da mesa, disse secamente: não. Perdão, tio Francisco! Não. Mas ouça, tio Francisco... Não. Macário sentiu uma grande cólera. Nesse caso, faço-o sem licença. Despedido de casa. Sairei. Não haja dúvida. Hoje. Hoje. E o tio Francisco ia a fechar a porta, mas voltando-se : olá!, disse ela a Macário, que estava exasperado, apopléctico, raspando nos vidros da janela. Macário voltou-se com uma esperança. Dê-me daí a caixa do rapé, disse o tio Francisco. Tinha-lhe esquecido a caixa! Portanto estava perturbado. Tio Francisco..., começou Macário. Basta. Estamos a doze. Receberá o seu mês por inteiro. Vá. As antigas educações produziam estas situações insensatas. Era brutal e idiota. Macário afirmou-me que era assim.
Nessa tarde Macário achava-se no quarto de uma hospedaria da Praça da Figueira com seis peças, o seu baú de roupa branca e a sua paixão. No entanto estava tranquilo. Sentia o seu destino cheio de apuros. Tinha relações e amizades no comércio. Era conhecido vantajosamente: a nitidez do seu trabalho, a sua honra tradicional, o nome da família, o seu tacto comercial, o seu belo cursivo inglês, abriam-lhe, de par em par, respeitosamente, todas as portas dos escritórios. No outro dia foi procurar alegremente o negociante Faleiro, antiga relação comercial da sua casa. De muito boa vontade, meu amigo, disse-me ele. Quem mo dera cá. Mas, se o recebo, fico de mal com o seu tio, meu velho amigo de vinte anos. Ele declarou-mo categoricamente. Bem vê. Força maior. Eu sinto, mas... E todos a quem Macário se dirigiu, confiado em relações sólidas, receavam ficar de mal com seu tio, meu velho amigo de vinte anos. E todos sentiam, mas...» In Eça de Queirós, Singularidades de uma rapariga loura, 1873-1874, Contos, 1901, Sopa de Letras, 2013, ISBN 978-972-870-878-8.

Cortesia de SopadeLetras/JDACT