(…) Múnio era conhecido pelo
cognome o Gasco, por ser oriundo da Gasconha
e ter chegado, anos antes, às terras de Anégia, nas margens do Douro, que
apresurou para si. O próprio rei se apressou a outorgar-lhe qualidade de
governador, interessado no estabelecimento da sua autoridade na fronteira com
os mouros. No final do conciliábulo, solicitou ao abade Rosendo uma audiência a
sós. O scriptorium do mosteiro acolheu-os, dando-lhes a privacidade de que
necessitavam. Ali se encontravam vários livros, o orgulho daquele ancião. Uns,
trazidos pelos moçárabes andalusinos das oficinas livreiras de Córdova; outros,
pelos peregrinos de santiago; outros ainda recolhidos com muito zelo pelo abade,
durante as inúmeras viagens feitas ao longo da sua vida, como era o caso das
obras de padres antigos oriundas de França e de Itália. Viam-se também livros
de Isidoro, Leandro, Ildefonso, Taio e Beda, o Venerável.
O governador de Anégia, um dos
poucos nobres que, na idade juvenil, aprendera a ler num mosteiro, fixou a sua
atenção numa das secções da biblioteca daquele que fora, em tempos, bispo das
dioceses de Dume-Mundoñedo e de Santiago. Encontravam-se ali separados livros que
o conde não contava ver, alguns deles de que nem sequer suspeitava existirem.
Ricamente encadernados, exibiam-se uma Crónica Moçárabe, uma Crónica Profética,
uma Crónica de Afonso III, um livro de João Toledo, uma cópia do Libellus de
Antichristo, de Adson de Montierender e uma edição de Comentários ao
Apocalipse, do Beato de Liébana, entre outros livros que Múnio não conseguiu
identificar. Abade... Que estranhas obras se encontram aqui... Interessais-vos,
por acaso, por algumas das ideias que já ouvi..., de que o mundo vai
acabar...?! Um sorriso aberto pairou, durante algum tempo, nos lábios daquele ancião
já de costas curvadas pelo peso dos anos, enquanto as suas mãos trémulas
acariciavam as lombadas dos seus amados livros.
Vejo que és muito perspicaz, meu
filho. De facto, tenho estado a recolher informações sobre essas questões.
Estou preocupado com algumas correntes que apregoam que o fim dos tempos está
próximo. Por isso, ao longo dos anos, tenho coleccionado os livros que têm
tratado esse assunto. E que dizem eles? Bom..., muitas coisas... Já que estás
interessado no tema, senta-te nesse escabelo e escuta, que eu resumo-te o essencial,
respondeu-lhe o venerando abade, dirigindo-se em passo cansado para o topo de
uma mesa quadrada feita em madeira de carvalho, onde se sentou em frente ao
anegiense. Não era aquela a razão por que Múnio pretendia falar a Rosendo, mas ficou
muito entusiasmado por poder receber os ensinamentos daquele sábio vivo.
O Bispo Julião de Toledo
dedicou-se à elaboração de laboriosos cálculos sobre o final dos tempos. Com a
chegada dos muçulmanos e de algumas pestes ao nosso território, os cristãos
moçárabes começaram, por sua vez, a preocupar-se com o fim da dominação dos
infiéis. Por isso, na sua Crónica Moçárabe previa-se que no ano 6000 da criação
do Mundo, o fim da sexta e última idade do Mundo, que corresponde ao ano 800
depois de Cristo, os muçulmanos seriam expulsos destas terras. Também o Beato
de Liébana, que viveu na segunda metade do século VIII, acreditava que a
Parusia ocorreria nessa ocasião, como se vê nos seus Comentários ao Apocalipse.
Este livro está ilustrado com várias iluminuras e desenhos retratando a sua
visão das convulsões e catástrofes que antecederiam o regresso de Cristo, no
final dos tempos. Como tal não aconteceu, o tema foi retomado no ano 883,
através da Crónica Profética e da Crónica de Afonso III, também elas escritas
por moçárabes. Estes assinalaram o ano seguinte como aquele em que terminaria o
castigo dos Godos pelos seus pecados e a consequente expulsão dos árabes. Convencido
de tais profecias, o rei Afonso III enviou, então, um emissário a Córdova
propondo a paz ao califa Muhammad I e solicitando autorização para trazer as
relíquias de Santo Eulógio e de outros mártires moçárabes para Oviedo». In
Alberto S. Santos, A Escrava de Córdova, Porto Editora, 2008, ISBN
978-972-004-166-1.
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