«(…)
O Will não tem nada a ver com isto, Dan, respondeu, retalhando com as mãos um
lenço de papel. Tu discutiste com ele na discoteca. Eu vi-vos. Não foi uma
coisa séria. A mim, pareceu-me bastante sério. Dan semicerrou os olhos. Fez-se
silêncio. Por que se separaram tu e Will? Isso não é da tua conta, Dan. Não
quero falar sobre isso. Ele estava bem furioso quando tu saíste, depois da
festa. Pode ter-vos seguido, a ti e a Ashley, até aqui a casa. Seguiu-se mais
um longo silêncio. Foi Ashley! Ashley fez alguma coisa!, murmurou Dan, por fim.
O sacaninha! O que aconteceu, Jess? Nada. Cerrou os punhos. Esquece, Dan. De
novo, uma pausa. Jess recordou a imagem de Ash, ao pé das grades, perto do
portão da praça. A vénia. O ar altivo com que olhara para cima, para a janela
do seu apartamento. O beijo soprado. Tentou tirar a imagem da cabeça, mas ela recusava-se
a sair. É verdade que tinha dançado com ele. Gostava dele; encorajara-o. Quem sabe
se não o induzira em erro. Suspirou, numa profunda lástima. Era um rapaz com tanto
potencial, talhado para as notas mais altas. Se o acusasse, e estivesse enganada,
se não tivesse sido ele, o inquérito da polícia destruí-lo-ia por si só. Ash
nunca mais se veria livre desse estigma.
Então, já tomaste a tua decisão. Dan
desistira de fazer perguntas. Vais mesmo partir. Observava-a tão atentamente que
ela receou que lhe estivesse a ler o pensamento. Jess aquiesceu. Ele continuou
a observá-la ainda alguns segundos, em silêncio. Muito bem. Ajudarei a resolver
as coisas com Brian. Parecia ter resolvido não discutir mais. Não te preocupes.
Vais ter uma excelente carta de referências, eu próprio me encarregarei de a escrever,
se é isso que queres. Vendo o lado positivo da questão, talvez arranjes um
lugar formidável em algum colégio privado feminino. Mesmo à tua medida. Dan deu
uma gargalhada curta e crua, e ela franziu o sobrolho ao súbito rancor daquele tom
de voz. Tira o Verão, Jess, prosseguiu. Esquece o que te perturbou tanto, seja lá
o que for, e recomeça no Outono! Inclinando-se para a frente, tornou a dar-lhe
uma palmada amigável no joelho. Seja o que for, Jess, ultrapassa isso. Não penses
no assunto. Põe tudo para trás das costas.
Stephanie
Kendal estava sentada à sua mesa de trabalho a pintar motivos num tabuleiro de
pequenas canecas profusamente adornadas, prontas para o esmalte final. Levantando
os olhos na direcção da janela, franziu o sobrolho. A luz do Sol desaparecera do
jardim. Sombras compridas atravessavam o relvado, direitas ao estúdio onde ela se
encontrava, a ouvir rádio. Inclinando-se para a frente, desligou o aparelho. No
silêncio súbito, ouviu o canto longínquo de um tordo, entrando pela porta aberta.
Era ligeiramente mais baixa, mais roliça e mais velha do que a irmã, Jessica, mas
entre as duas mulheres havia um inequívoco ar de família, herdado da mãe. De Aurelia
Kendal, também lhes viera o amor pela Literatura, o talento artístico, o charme
e a liberdade de convenções. Em resposta à sua decisão de viver como uma ermitã
numa pequena casa de campo perdida nos Baixos Pirenéus, quando não estava a correr
mundo na qualidade de jornalista e autora de guias de viagem, as duas filhas tinham
gravitado para o interior de Londres, depois da licenciatura e da escola superior
de educação. Jess ainda lá estava. Stephanie cedera, virara costas às luzes da ribalta
e passara o seu último divórcio naquele sonho galês: uma pequena quinta de montanha,
não muito longe do lugar onde a mãe chegara a viver, antes de ter decidido
trocar as colinas do País de Gales pelas cordilheiras francesas». In
Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008, tradução de Catarina Almeida,
Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.
Cortesia de PManuscrito/JDACT