Polícia
«(…)
Nessa manhã de Dezembro em que chovia (eu falaria depois a Annemarie da chuva
lenta, longa), M. Maurice começou a duvidar da sua influência e da influência
do partido comunista. Disse-me que já nada poderia fazer por mim. Seria melhor
eu partir para a Alemanha ou a França, ou arranjar então lugar num barco que
saísse de Antuérpia. Considerava as palavras do meu amigo enquanto bebia cerveja
num bar perto da estação. No calor do bar a roupa fumegava. Gotas de água à
volta. Calma solidão sem dor. Havia música. Meu Deus! A minha alma conhecia os seus
caminhos. A terra era grande. Tudo quanto eu fizesse, cada coisa que me
acontecesse, não me tomariam maior ou menor que a fé ou o desespero. Pois o
desespero era antigo: uma delgada, tenacíssima raiz. Era uma experiência, um
pensamento, um destino, algo que eu aceitava, que me induzia talvez a amar a
vida. Estava só no meio da chuva tranquila. Podemos sempre beber uma cerveja
como se fosse a última. Em cada instante a terra ainda consegue ser completa: é
a única, e isso mesmo a renova. Annemarie sentou-se à minha mesa. Vi logo o
tamanho da sua solidão: tinha o tamanho do mundo. Ela era a criatura mais só do
mundo. E a sua história apareceu, simples, tenebrosa, entre as nossas duas cervejas.
Todas as histórias pessoais são simples e tenebrosas. Não me comovi. Comovido
já eu estava: com as coisas, comigo, com a chuva sobre a cidade. Talvez
houvesse uma irónica alegoria em nós dois ali sentados diante dos belos copos frios,
compreendendo ambos tão facilmente o que nos acontecia e iria acontecer que não
tínhamos pressa. Poderíamos morrer ali mesmo. Esperávamos.
Annemarie
era francesa, de Lyon. Abandonara um filho de dois anos. O marido combatia na
Argélia, talvez estivesse morto. (Ela dizia que o amava, e por que não? O amor
e o desespero e a desordem, isso é a nossa parte do jogo). Annemarie não queria
regressar à França. Mas vivia na Bélgica sem documentos. Fora já posta na
fronteira duas vezes: voltara, voltaria sempre. Que pode fazer uma pessoa senão
voltar, estar fora, ser completamente estrangeira, não ter papéis? A terra é
enorme. Paramos num sítio. E agora estamos sentados e procuramos, com a nossa história
simples e desesperada, atrair o cuidado, o fervor alheio. É assim. Renovamos a
espera inútil; o milagre onde não há milagres; a luz ao fundo, sempre ao fundo.
Somos ilegais, em cada dia criamos uma rápida, brevíssima beleza surpreendente
contra a face do pavor. M. Maurice perdera a última esperança de me salvar. O
partido comunista, a viagem de ida e volta em comboio até Clabeck, a chuva, uma
impossível salvação (que salvação?), embrulhavam-se dentro de mim, e eu sentia-me
embriagado, feliz, irresponsável: sentia-me como se estivesse perto de morrer.
Agora
uma mulher bebia cerveja na minha solidão, falava do filho que abandonara, do
marido que estava na guerra. (Pronunciava as palavras devagar, arrancava-as inexoravelmente
a esse sempre vivo e sempre secreto vocabulário do medo e do empenhamento.)
Dizia sorrindo que estava perdida. Gostava da cerveja belga, achava Bruxelas insuportável.
Sim, queria morrer. Queria morrer anonimamente, no fim do deserto. Eu percebia.
Os chuis farejavam à volta da Gare du Nord, farejavam-nos a todos: pu…, chulos,
vadios, indocumentados, ilegais. Sabiam que ela voltara: seria presa? Já o fora
algumas vezes: não era o pior. Seria mesmo a única forma agora possível de
pensar nas coisas, de avaliar o mundo. Mas aí acabava o jogo. Não se podia
dizer: sou livre. Não se podia arriscar a liberdade. (E perguntar: que liberdade?)
Eu também seria preso, repatriado: andaria depois por Lisboa a dormir em
quartos de amigos, em camaratas públicas. À caça de um almoço, uma sopa, um
copo de leite. Todos os lugares são no estrangeiro. E eu passaria junto ao rio,
olhando a crespa e lívida massa das águas, a outra margem com o fumo vermelho
das refinarias a sufocar a branca luz a prumo. E imaginava já a prisão em
Bruxelas. Era preciso enganar a polícia. Rebentar de fome, sim,
estrangeiramente, mas não perder nunca a liberdade. (E a pergunta: que
liberdade?)
Annemarie
tinha o dom da poesia subversiva. Subvertia tudo. A seu lado senti que a minha
vida era importante. Que a arriscaria, sempre e sempre, que perderia, mas nada
cedendo de mim próprio. O amor do perigo embebedava-me. Começávamos então a
lutar contra a polícia do mundo inteiro. Quando anoiteceu saímos do bar e fomos
a pé, vigilantes, protegidos, até ao meu quarto de Laeken. Contornamos o que
nos parecia suspeito: um carro parado, um vulto vagaroso, as sombras, as vozes.
Foi ainda preciso subir furtivamente as escadas do prédio, pois a senhoria já
me mandara embora, porque 1º eu não lhe pagava a renda, porque 2º não
queria complicações com a polícia. Mas depois o quarto foi nosso. Annemarie
despiu-se e deitou-se nua sobre o cobertor enquanto eu tentava aquecer um pouco
de água. Falamos longamente da chuva, do amor e das leis». In Herberto Helder, Os Passos em
Volta, 1994, 2004, Assírio & Alvim, 2009, ISBN 978-972-370-119-7.
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