Constança
Castelo de Toro, Castela
«(…) Da legítima nenhuma semente ainda
gerara. Um assomo de regozijo maldoso enchera-me o coração ao saber do infortúnio
da mulher que me levara o marido e a coroa de rainha. Mas a piedade levou a melhor
e não tardei a dirigir as minhas preces para que algum consolo chegasse à pobre
Maria. Dificilmente poderia conceber um maior calvário para uma mulher. Bem procurava
na oração uma resposta para a má sorte das infantas dos reinos ibérios. Deus teria
os seus desígnios bem avaliados... Sobre o meu próprio destino, fazia por
afastar os pensamentos, concentrando-me nas cartas de meu pai que me eram autorizadas,
sempre cobertas de ânimo e de ensinamentos. Sei de quem sou filha, honrarei o meu
sangue, repetia perante o crucifixo todas as manhãs e todas as noites. Apurei o
ouvido. Deveriam ser muitas dezenas de cavaleiros para assim abalarem a mudez
daquele lugar.
Abriu-se uma porta ao fundo da câmara.
Vi aparecer uma das damas que me impusera Afonso XI. Manteve-se à entrada
enquanto fazia um sinal a uma mulher mais velha, que bordava perto de mim. Ela levantou-se
cuidadosamente, segurando o bordado e as lãs, que colocou em cima do banco. Ajeitou
o vestido e apressou-se para chegar perto da outra. Trocaram algumas palavras em
surdina. A dama que se erguera olhou-me de soslaio, acenou com a cabeça em
sinal de entendimento e regressou ao seu lugar. Continuando de pé, disse: vosso
pai está a chegar. Levei a mão à boca para travar o grito de assombro que quase
me fugira pela garganta. De assombro e de alegria, que eu nem admitia que fosse
uma má nova que fazia meu pai deslocar-se àquele inferno. Ou que fora sem a autorização
de Afonso XI, apesar de ser bem capaz de enfrentar o soberano, ousando uma
invasão dos seus domínios. Não. Aquela vinda era boa, dizia-me a intuição.
Entrou ainda coberto pelo pelote de
lã e com o gorro já retirado, caído sobre os ombros, revelando o cabelo grisalho,
desarrumado pelo vento e baço do pó. O seu porte imponente impôs-se e avançou
com passadas firmes até ao meio da sala. Um cheiro a estrebaria invadiu os aposentos.
O infante Juan Manuel deveria andar em viagem havia dias. Meu pai... Constança flectiu
os joelhos numa reverência, contendo as lágrimas. Mas Juan Manuel ignorou os cumprimentos,
ainda que o peito denunciasse emoção por rever a filha. Providencia para que reúnam
todos os teus bens. Foste libertada e abandonarás agora mesmo este local
maldito, anunciou, passando em redor os olhos escuros a chisparem de desafio. A
sua voz, forte e elevada, ecoou no silêncio constrangido que caíra num espaço que
fora de mudez e de renúncia. Junto a si, os guardas do rei mantinham-se próximos,
a recordar a quem pertencia o poder naquele lugar. Rapidamente, adiantou. Não permanecerei
aqui mais do que o estritamente necessário. Constança reagiu precipitadamente:
posso partir desde já, meu pai. Não me importa o que contêm as arcas. Tudo o que
desejo é abandonar este castelo. Não, cortou Juan Manuel. Entraste aqui como rainha.
Sairás com honras de soberana. Ela olhou para as mulheres que mantinham os olhos
pregados ao chão. Haveis ouvido o que tendes a fazer, declarou subitamente, num
tom firme que nunca fora ouvido por aquela gente, habituada aos seus passos sem
som e ao fio de voz que raras vezes deixara escapar. A surpresa fez as damas erguerem
a cabeça. Juntai tudo o que me pertence, ordenou. Violante ajudar-vos-á, conhece
os bens que me cabem. A dama mais velha afoitou-se a falar: perdão, senhora. Não
recebemos instruções sobre o que vos cabe em direito... Constança ripostou: tudo
o que veio comigo. E o que me foi enviado durante estes anos. São estas as instruções
que vós sabereis executar com precisão. Sem mais perguntas. A outra curvou-se. Desejo
ficar a sós com meu pai.
Ficou a vê-las sair dos
aposentos, dando passos atrás, sem lhe virarem as costas, como se fosse rainha,
o que nunca antes acontecera. Reprimiu o sorriso que lhe nascia nos cantos da
boca pela constatação de que o poder estava mais vezes na percepção dos outros
do que na realidade. Faria por nunca esquecer aquele inesperado ensinamento. O movimento
encheu os aposentos em redor da câmara enquanto se revolviam arcas, arrumavam
jóias em caixas e se retiravam os muitos oratórios que haviam confortado a infanta
e que Constança tinha em apreço mais do que qualquer outra posse. Chamou Violante.
Traz-me o colar de safiras e aljôfares. Quero viajar com ele sobre a pele. Aquele
tesouro fora de sua avó materna, Branca de Anjou. Aguardou que a ama lhe satisfizesse
o pedido. Violante afastou a trança do pescoço e compôs a jóia sobre a pele delicadamente
morena. O infante Juan Manuel atentava na filha que se fora transformando numa mulher
em cativeiro, longe dos seus olhos. Avaliou com pormenor de negociador aquele trunfo
de carne e osso que ainda lhe restava. As faces descoradas ganhariam viço fora dali
e agradou-se com a correcção dos traços, com a beleza que quase esquecera: o nariz
pequeno e a boca bem feita, os olhos rasgados, de um tom dourado, que carregavam
uma languidez cândida, embora cobertos de tristeza, a fartura dos cabelos escuros
e luminosos. A esbeltez que a puberdade trouxera prometia uma dama bem talhada que
não se desdenharia nas melhores cortes. Mais do que tudo isso, Constança era de
sangue real, por parte da mãe e do pai. E tinha porte». In Isabel Machado, Constança, A
Princesa Traída por Pedro e Inês, A Esfera dos Livros, 2015, ISBN
978-989-626-718-6.
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