O
Pacto de Melchior. … cerca de 250 anos depois; Março de 1554
«(…)
A casa de madeira do velho eremita, um autêntico pardieiro, era despojada de
comodidades. Junto à porta dos fundos, sobre uma pedra rectangular, alguma
cinza e utensílios pretos de fumo denunciavam a cozinha ou o que mais se lhe aparentava.
Não se lobrigava local onde pudesse guardar víveres ou quaisquer haveres pessoais,
nomeadamente o vestuário. À entrada, encontrava-se uma decrépita mesa e respectivo
banco de madeira. Junto à lareira, via-se, sobre um móvel enegrecido, um castiçal
de estanho, um crânio semidesdentado, um perfumador de cobre e uma garrafa meio
cheia, cujo material de que era feita se não descortinava de tão enegrecida, à semelhança
dos outros imperpcetíveis objectos. O odor longínquo de um perfume exótico
misturado com incenso denunciava que o carvão ardera recentemente no perfumador.
Cochichava-se, em Córdova, que Melchior nascera árabe, no último reino nazarí
de Granada, antes de ser banido pelos Reis Católicos, em 1492, e ninguém
afirmava com absoluta certeza que a sua conversão ao cristianismo fosse sincera.
Mas o povo não duvidava da sua fama de santo, de asceta e de conhecedor dos muitos
segredos antigos do Universo. O velho eremita puxou a mesa para o centro do tugúrio
e mandou-os esperar de pé, sem qualquer explicação, saindo pela porta dos fundos.
Voltou com um toro de madeira, que colocou junto à mesa, para servir de assento
aos hóspedes, e dirigiu-se novamente para a porta. Precisas de ajuda?, perguntou
Jaime, incomodado por não auxiliar o ancião.
Não, meu filho, obrigado! Tenho
tão pouco que fazer por estes lados que esta é uma boa oportunidade para me
exercitar. Os três sorriram, muito embora a idade não parecesse, naquele momento,
pesar nas forças e desenvoltura do delgado eremita. Depois de colocar os três assentos,
perguntou: então, contem-me lá essa história! Porque decidiram tornar-se irmãos
de sangue?! Jaime pegou na palavra para narrar a saga que os levou à decisão: todos
nós temos algo em comum: somos órfãos de pai ou de mãe. Tirando Fernando del Pozo,
que tem um irmão mais velho a estudar para ser padre, nenhum de nós tem outros irmãos.
Assim, decidimos tornar-nos irmãos uns dos outros, informou com avidez, enquanto
os demais assentiam com a cabeça. Somos muito amigos e queremos fazer perdurar esta
amizade durante toda a vida..., corroborou Simão, com uma leve acentuação de tristeza.
Sabe, este nosso amigo vai viajar
para Portugal e não sabemos quando voltaremos a ver-nos. Fernando del Pozo
apontara para Simão, enquanto continuava a animada explicação. Também Jaime vai
estudar para Salamanca. Mas queremos, quando formos mais velhos, voltar a encontrar-nos.
E, para o caso de precisarmos uns dos outros, independentemente dos caminhos que
viermos a seguir, decidimos jurar que nos obrigaremos a auxiliar aquele de nós
que estiver em necessidade. Muito bem!, replicou o ermitão, com ar simpático e desanuviado.
Acho que me convenceram. É uma boa razão para serem irmãos de sangue. Mas
digam-me cá uma coisa: acaso tendes ideia do ritual a que vos irei sujeitar?, perguntou,
num tom insondável. Os três amigos acenaram ao mesmo tempo, confirmando o que Simão
já lhes contara. Bom... Então, vamos a isso! Têm de voltar a casa, antes de o sol
se pôr!
O ermitão saiu novamente pela porta
dos fundos e, volvidos alguns minutos, retornou com um livro de aspecto muito antigo,
com caracteres árabes na capa. Que estranho livro é esse?! Melchior olhou
profundamente para Jaime, o autor da pergunta. Prometem guardar um segredo? Os irmãos
de sangue, a primeira coisa que devem saber, é guardar um segredo... Nós vamos guardá-lo!!!,
responderam os três, ao mesmo tempo. Desde já vos digo que, se não o souberem
preservar, poderão correr risco de vida. Por isso, é bom que saibam guardar este
vosso primeiro segredo... Os rapazes voltaram a entreolhar-se e anuiram, corajosamente,
com a cabeça. Este é um de sete volumes cujos originais foram escritos em Damasco,
nos primeiros anos da chegada dos árabes a esta terra, por um sábio iemenita, chamado
Alhazred. Chama-se Al Azif, um termo árabe que designa o ruído que fazem os insectos,
no silêncio da noite. Por isso, há quem o traduza por O murmúrio dos demónios.
Todos abriram a boca, num misto de espanto, ansiedade e temor». In Alberto S.
Santos, A Profecia de Istambul, Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-103-6.
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