A
Mulher que Amou Jesus
«(…) Um vento leste bateu nas águas
do lago, fazendo tremer a sua superfície; ela observava as pequenas ondulações
que, de facto, pareciam as cordas de uma harpa. O nome antigo, e poético, do lago
era Quinerete, lago Harpa, devido ao seu formato e também devido aos desenhos do
vento a bater na água. Maria quase conseguia ouvir o som agradável de cordas a serem
tocadas, cantando para ela através das águas. Lá vêm eles! O pai de Maria gesticulava,
mostrando-lhe que devia levar o burro para junto dos outros. Na estrada empoeirada,
ela via uma grande caravana a aproximar-se. Além da massa de peregrinos, viam-se
um ou dois camelos ao lado dos burros. Devem ter celebrado o Sabat até muito tarde,
ontem, disse, maliciosamente, a mãe de Maria. Estava aborrecida; o atraso na
partida era um transtorno. De que servia atrasar a partida para depois do Sabat
se, de qualquer maneira, se perderia meio-dia? Nunca se começava uma viagem na
véspera do Sabat, ou mesmo na antevéspera, se a viagem fosse longa. A lei judaica,
que proibia caminhar mais que uma milha romana no dia do Sabat, significava que
se perderia um dia de viagem. O Sabat é uma desculpa para perder tempo, disse, em
voz alta, o irmão de Maria, Silvanus. Essa insistência no cumprimento estrito do
Sabat prejudica-nos no comércio exterior; os gregos e os fenícios não descansam
um único dos sete dias da semana! Sim, Samuel, nós sabemos das tuas simpatias pagãs,
respondeu o outro irmão mais velho de Maria, Eli. Daqui a pouco vais-te pôr a correr
nu pelo ginásio, com todos os teus amigos gregos. Silvanus, ou melhor Samuel, lançou-lhe
apenas um olhar irado. Não tenho tempo para isso, disse, friamente. Estou muito
ocupado a ajudar o pai com os negócios. Mas tu, com todo o tempo livre para
estudar as escrituras e consultar rabinos, tens certamente tempo suficiente para
ir ao ginásio ou a qualquer outro lugar de diversão que desejes.
Eli irritou-se, tal como Silvanus
sabia que aconteceria. O mais novo tinha um temperamento fogoso, apesar dos seus
esforços para aprender os caminhos e os porquês de Javé. Com o seu perfil delicado,
o nariz aquilino e a aparência nobre, poderia passar por grego, pensou
Silvanus. Ao passo que ele, quase dava uma gargalhada, parecia-se mais com aqueles
estudiosos que passavam o dia curvados sobre a Tora na beth há-Midrash, a Casa do Saber. Javé devia ter um sentido de
humor enorme. O estudo da Tora é a coisa mais importante que um homem pode fazer,
respondeu Eli, com firmeza. Preenche o lugar de qualquer outra actividade de
natureza moral. Sim, e, no teu caso, exclui qualquer outra actividade que seja.
Eli resmungou e afastou-se, puxando o burro e voltando as costas para Silvanus,
que se limitou a rir. Maria já se tinha habituado a ouvir aquelas discussões, sob
as mais diversas formas, entre os seus irmãos de vinte e um e dezoito anos. Nunca
chegavam a conclusão alguma e nunca as aprofundavam. A sua família era profundamente
religiosa e cumpria todos os rituais e obrigações; só Silvanus demonstrava
impaciência para com o que o seu pai chamava a perfeita Lei do Senhor.
Maria gostaria de poder estudar essa
lei judaica na pequena escola anexa à sinagoga, a beth ha-sefer, e ver por si própria.
Ou então roubar os conhecimentos que Silvanus adquirira ao estudar a Tora, já que
não os parecia querer. Mas não era permitido às raparigas frequentarem a escola,
pois não podiam ocupar funções oficiais na religião. O seu pai repetia, com firmeza,
as exigências do rabino: seria preferível ver a Tora queimada do que ouvi-la dos
lábios de uma mulher. Devias aprender grego, para poderes ler A Ilíada, sugerira
uma vez Silvanus, com uma risada. Eli, naturalmente, opusera-se, explodindo. Mas
Silvanus insistira: se é proibido a alguém conhecer a sua própria literatura e ciência,
não se verá essa pessoa forçada a procurar outras? Silvanus tinha razão; os
gregos eram abertos a que outros conhecessem a sua cultura, enquanto que os judeus
guardavam a sua como um segredo. Cada uma das atitudes resultava de pensarem
que a sua era uma cultura superior: os gregos achavam que uma pitada de cultura
grega conquistaria, imediatamente, qualquer pessoa, enquanto que os judeus entendiam
que a sua era tão preciosa que seria profanada caso fosse oferecida a qualquer um.
Isso, naturalmente, aumentava a curiosidade de Maria em relação a ambas. Iria aprender
a ler, disse a si própria, e depois iria descobrir sozinha a magia e os mistérios
das Sagradas Escrituras». In Margaret George, A Paixão de Maria
Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN
972-883-911-1.
Cortesia de SdeEmergência/JDACT