Isabel.
Maio de 1588
«(…) Nem preciso adivinhar o que
sua santidade decretaria. A bula afirma..., estalei os dedos sinalizando a
Burghley que me devolvesse o documento, e então consegui ler o seguinte: que os
meus feitos e defeitos são tais que, citando a bula, alguns deles fazem-na
incapaz de reinar, outros a declaram indigna de viver. Ele ainda afirma que me
priva de toda autoridade e dignidades da realeza, declarando-me ilegítima e
absolvendo os meus súbditos da obediência a mim. Assim, sua santidade (o antes
grande inquisidor de Veneza) prepararia uma bela fogueira para mim. Estremeci.
Não era brincadeira. Veio como ordem a todos para se aliarem ao exército
católico do duque de Parma e do rei católico, isto é, Filipe II da Espanha. Ele
concluía prometendo indulgência plena a todos que ajudassem a destronar-me. No
final, acabei rindo mesmo.
Indulgências! Por que é exactamente
isso o que o mundo ainda quer! Foi o abuso de indulgências que fez com que
Martinho Lutero iniciasse a sua rebelião contra a Igreja Católica. Eles não são
muito criativos em descobrir as novas recompensas, são? comentei, atirando a
bula ao chão. Ele ainda ofereceu 1 milhão de ducados aos espanhóis como
incentivo para invadir a Inglaterra. Fiquei olhando para Burghley e perguntei:
ele está oferecendo uma recompensa por nós? Burghley fez que sim com a cabeça. O
papa do povo, como gosta de ser conhecido, é um negociador inteligente. A
recompensa não será dada até que os espanhóis realmente ponham os pés aqui. Não
há pagamento antecipado. Então, de qualquer maneira ele ganha. Urubu maldito.
Ele espera transformar a Inglaterra em carniça para que possa arrastá-la por
aí? Nunca! Chame o secretário Walsingham e o conde de Leicester para uma reunião.
Temos que discutir a situação antes da reunião do Conselho Privado. Vocês os três
são os pilares do governo. Burghley discordou, balançando a cabeça. Sem falsa
modéstia, sabe que é verdade. É o meu espírito. Leicester, meus olhos e
Walsingham, meu vigilante mouro. Convoque a reunião para hoje à tarde. Levantei-me,
sinalizando que a nossa conversa estava encerrada. Cuidadosamente coloquei os
malditos papéis na minha caixa de correspondência e fechei-a.
Era hora do almoço. Geralmente,
faço essa refeição na sala reservada e alguns criados auxiliam-me, embora a
mesa principal esteja sempre posta no salão grande. Os cortesãos de baixo
escalão e empregados almoçavam lá, mas o meu lugar permanecia vazio. Em
determinado momento, perguntei-me se deveria fazer uma aparição pública naquele
dia. Fazia quinze dias que não aparecia em público. Mas decidi não aparecer.
Não queria expor-me num momento como aquele. A bula papal e a convocação de
guerra contra mim deixaram-me mais abalada do que queria admitir. Devemos todas
almoçar aqui, disse às minhas damas de companhia. Três delas eram mais íntimas:
Catherine Carey, minha prima; Marjorie Norris, amiga desde minha juventude; e
Blanche Parry, minha ama de muitos anos. Abra as janelas, pedi a Catherine. O
dia estava bonito e tranquilo, daqueles em que as borboletas dançam pela rua.
Alguns meses de Maio pareciam apenas invernos floridos, mas o
clima daquele mês de Maio estava fresco e perfumado. Assim que as janelas se
abriram, o mundo lá fora aproximou-se de mim com a sua brisa.
A
mesinha estava arrumada no centro do quarto e ali não costumávamos usar todos
os paramentos cerimoniais, com excepção do provador, que não dispenso. Os
criados apresentavam os pratos por ordem e fazíamos as nossas escolhas sem
delongas. Estava sem fome. A bula papal tirara-me o apetite. Mas não comia
muito em geral e os pratos servidos não me chamaram atenção alguma. Marjorie,
uma camponesa robusta de Oxfordshire, sempre comia bem. Mas naquele dia estava
atacando a carne de porco cozida, utilizando a caneca de cerveja para ajudar a
comida a descer. Catherine era baixinha e gordinha, mas só petiscava, por isso
o rosto rechonchudo era um mistério. Marjorie era uns quinze anos mais velha
que eu, Catherine uns quinze anos mais jovem do que eu. A velha Blanche Parry
tinha mais de oitenta anos. No entanto, não enxergava mais, havia perdido a
visão recentemente e passara a função de cuidar das joias reais para a jovem
Catherine. Estava agora à mesa, comendo apenas por hábito e paladar, fitando o
nada. Subitamente, tive o impulso de me aproximar para segurar-lhe a mão. Ela
surpreendeu-se. Não a quis assustar, disse. Mas o toque daquela mão calma reconfortava-me.
A senhora deveria envergonhar-se por ter assustado uma velha!, repreendeu-me». In
Margaret George, Isabel I, O Anoitecer de um Reinado, tradução de Lara Freitas,
Geração Editorial, 2012, ISBN 978-858-130-076-4.
Cortesia de
GeraçãoE/JDACT