Cochim
«(…) Se quereis saber como tudo
se passou, anui, agradado do elogio, eu vo-lo contarei com toda a verdade,
porque a tudo fui presente. Com um murmúrio de aprovação, cada um se acomoda o
melhor que pode no espaço exíguo e desconfortável da coberta para ouvir o
soldado da Índia que, como aquela dona dizia, é um bom contador de histórias.
Bento Castanho cerra os olhos por momentos, como para arrumar as ideias, e
começa: para conseguir a fortaleza de pedra, o vizo-rei jogou com a gratidão e
o receio do soberano a quem, no ano de mil quinhentos e três, os portugueses
tinham ajudado a vencer o exército do Samorim de Calecut, livrando-o da sua
vassalagem e fazendo dele um rei muito mais poderoso. Em paga desse auxílio,
Huriabem permitira aos primos Albuquerque a construção de um forte de madeira
na boca do rio, o lugar escolhido pelo feitor Diogo Fernandes Correia, por ter
uma bela baía onde se poderia fazer um amplo porto para carregar as naus. Ao
longe, os três grandes rochedos, dispostos em fileira e seguindo a linha da costa,
pareciam sentinelas vigilantes...
Pela sua privilegiada situação, a
sul de Calecut, Cochim era a escolha óbvia para capital da Índia portuguesa,
necessitando para tal de uma fortificação de pedra e cal, defendida por
muralhas, uma forte artilharia, sustentada por uma boa povoação de gente lusa
com cristãos da terra que, em pouco tempo, se convertesse numa cidade populosa
e próspera. Francisco Almeida viera determinado a fazê-la, recorrendo a todos
os meios pacíficos, como odiaas, peitas e promessas de futuros benefícios,
para vencer a relutância d’ei-rei Huriabern, o qual, muito embora predisposto a
satisfazer todos os pedidos dos seus aliados cristãos, achava que uma construção
muralhada, armada com grossa artilharia seria uma clara manifestação de medo
face aos seus potenciais inimigos e, portanto, uma grande perda da sua honra.
Para mais, querendo o vizo-rei construir edifícios cobertos de telha, um
privilégio de que em todo o Malabar apenas gozavam as casas dos reis ou os
templos dos seus pagodes e que, por uma antiga lei de Calecut, era também
interdito aos pouco poderosos reis de Cochim, que se arriscavam a perder o
reino em caso de desobediência.
Não querendo de nenhum modo agravar
quem lhe concedera o monopólio da pimenta, carregando-lhe em cada ano todas as
naus do reino com a preciosa especiaria, Francisco fingira acatar a
determinação do soberano e fizera construir uma grande povoação de muitas ruas
com casas de madeira sobradadas, cobertas de palha ao modo malabar, onde também
havia boticas e tendas da gente da terra que vendiam toda a sorte de coisas de
comer, boas e baratas. Ao mesmo tempo, peitava em segredo os caimais, os seus duques
e condes, bem como os regedores do reino, fazendo-lhes grandes honrarias e
cumulando-os de presentes; como o seu filho Lourenço conquistara a amizade do
príncipe herdeiro, que lhe chamava irmão, contava ter nele um formidável
aliado. O rajá, todavia, não se decidia a satisfazer-lhe o pedido e o vizo-rei recorreu
a remédios mais extremos. Mandou a alguns dos seus homens de confiança que
escondidamente fossem lançar fogo às casas de madeira dos portugueses e da
feitoria (que mantinha vigiadas para não deixar o fogo alastrar e consumir as
mercadorias armazenadas), recompensando os donos pelos seus prejuízos à custa
do rei Huriabem que lhes pagava os soldos. Por fim, fizera incendiar a sua
própria casa e a igreja, que deixara arder até ao fim, para ter maior razão de
queixa contra os mouros de Calecut que, a mando do Samorim, queriam escorraçar de
Cochim os portugueses que defendiam el-rei contra os seus inimigos». In
Deana Barroqueiro, O Corsário dos Sete Mares, Casa das Letras, Oficina do
Livro, 2012, ISBN 978-972-462-117-3.
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