«Partindo de um texto de Herberto
Helder onde se trata de bicicletas e helicópteros, este ensaio propõe a
abertura para o imprevisível de um passeio. Entendido como exploração, o
passeio confunde-se com a incógnita e só termina quando o explorável se torna
conhecido. Como dar conta da fenomenologia do passear, abarcando desde a força
das expectativas anteriores até à formação de uma panorâmica, uma assimilação do
diverso na percepção simultânea, desde o acto de desocultação até à organização
do saber?
Este ensaio pretende seguir o
exemplo herbertiano, abrindo-se a um plural imprevisível. Seja o ensaio o duplo
do passeio, adquirindo por sincretismo os contornos da fenomenologia do
passear/voar herbertiano (pois toda a leitura crítica que não se saiba assim
invadida pelo texto apenas pode incorrer na má-fé de mitos positivistas). Além
disso, é o texto herbertiano que, lúdico, me convida a escrever um scherzo. Seja o ensaio homenagem
a uma metáfora, resposta a um repto, medição do alcance da metáfora. E ainda:
um voo sobre outro voo. Parto do texto a paisagem é um ponto de vista, publicado em Photomaton & Vox (para
as citações, recorrerei à terceira edição, de 1995). Uma primeira versão
daquele texto surgiu em 1976, sem título e sem indicação do nome do autor, como
introdução a uma antologia literária: Nova.
Magazine de poesia e desenho, Inverno de 1975/1976. O texto
terminava com uma descrição entusiasta dos objectivos da antologia; mas esses
parágrafos finais desaparecem em Photomaton
& Vox. Ora, em 1976, nada prova que este texto (doravante
referido como declaram que…, suas primeiras palavras) seja da autoria de
Herberto Helder: sendo Nova
organizada por António Palouro, António Sena, Herberto Helder, e editada
por este último, poderíamos supor que declaram que…, fosse do punho de qualquer
dos organizadores. Só com a inclusão do texto em Photomaton & Vox, três anos depois, Helder assume como sua a defesa da visão
helicopteriana da poesia. Nada disto, e muito menos o assumir da paternidade, é
inocente ou desprovido de consequências.
Na sua primeira versão, o texto
de Herberto Helder divide-se pois em duas partes: a primeira é uma teorização
metapoética a partir da metáfora do helicóptero como instrumento de leitura da poesia;
a segunda, separada por três linhas de intervalo, apresenta objectivos e premissas
da antologia. Sugere-se assim que a proposta revolucionária de aplicação da
metáfora helicopteriana será resolvida (ou está já resolvida) pelos poetas
antologiados (ou pela reunião desses poetas na antologia). No entanto, a
ambiguidade predomina. Quem lança a proposta: Herberto Helder ou a comissão
organizadora? A favor de quem? Contra quem? O repto dirige-se também/sobretudo
aos poetas da antologia? A todos os poetas revolucionários (e em que sentido
deve ir esta revolução poética-ideológica?) do Portugal do Inverno de 1975/76?
Aos poetas que andam ainda em mala-posta? Ao próprio autor de declaram que…?
Nem todas estas questões serão
resolvidas pela (re)publicação de declaram que…, em Photomaton & Vox. Na versão de 1979, declaram que…,
constitui o décimo-oitavo texto entre os cinquenta e nove do livro,
intitulando-se a paisagem é um
ponto de vista, entre parêntesis e em itálico, sublinhando a
parergonalidade dos títulos em relação aos textos propriamente ditos de Photomaton & Vox. O estilo é
depurado, redundâncias e algumas expressões orais de cortesia irónica apagam-se
ou atenuam-se. Além disso, o texto integra-se num livro de Herberto Helder. O projecto de fonte anónima, dirigido
a um público ambiguamente lato, passa a ser legível com (ou contra?) outros
textos do mesmo autor, incluindo os outros textos do mesmo livro. Constitui-se uma
poética pessoal, que giza possibilidades de biografia e estabelece coordenadas
idiossincráticas. De declaram que…, a paisagem
é um ponto de vista cria-se um pai, isto é, um piloto». In
Pedro Eiras, A Metáfora do voo em Herberto Helder, Revista da Faculdade de Letras, Línguas e Literaturas, II Série,
vol. XXII, Porto, 2005.
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