«(…) Mas Stephanie já não sabia
bem se tomara a decisão certa. Pousando o pincel, pegou num trapo manchado de
tinta e limpou os dedos, franzindo um pouco o sobrolho enquanto o fazia. O som
era tão subtil que mal o distinguira da música do rádio. Um estalido, não mais
do que isso, vindo da outra ponta do estúdio. Passou os olhos pelas estantes
carregadas de olaria, os sacos de barro, os frascos de esmalte, as latas de
tinta na mesa encostada à parede. As pedras toscas da velha vacaria tinham sido
caiadas, as seteiras medievais envidraçadas, as vigas tortas, no tecto alto,
pintadas e guarnecidas, aqui e ali, de ganchos de ferro ornamentados, onde ela pendurava
as ferramentas mais leves, e de um espanta-espíritos de vidro que tinia
vagamente na corrente de ar, oferta de um dos seus muitos admiradores. Ei-lo,
de novo. O estalido, seguido de um estrondo. Um pássaro ou outro animal devia
ter entrado pela porta aberta, enquanto trabalhava, e começado a remexer nas
estantes. Sem fazer barulho, empurrou o banco alto para trás e levantou-se. Vários
minutos de cuidada investigação não lhe forneceram qualquer pista a respeito da
origem do ruído, embora a sua inquietude crescesse.
Sentia a presença de algo ou de
alguém. A observá-la. Sentia um par de olhos fixos na sua nuca. Está aí alguém?
A sua própria voz soou-lhe nervosa. Dirigindo-se à porta, olhou lá para fora. A
vacaria era perpendicular à casa, com as suas paredes caiadas e o telhado de
velha ardósia galesa, unindo-se à cozinha por um corredor recém-construído. A
porta onde ela se encontrava dava directamente para o exterior, para o antigo
pátio da quinta, em forma de L, onde estacionava o carro, cercado de vasos de
terracota com lavanda e alecrim. Franziu o sobrolho. O isolamento absoluto daquela
velha quinta de montanha fora um dos seus encantos quando comprara a herdade.
Acima de tudo, amava o silêncio, embora tivesse de admitir que a paz fosse de
pouca dura, porque os seus amigos não paravam de lhe entrar, uns a seguir aos
outros, pela porta dentro. Nos últimos tempos, porém, quando se encontrava
sozinha, algo a perturbava. A sensação de que estava a ser observada. De que alguém,
ou alguma coisa, se encontrava dentro de casa, com ela. Não um ser humano. Com
isso, saberia lidar, julgava. Não, uma coisa mais subtil. Mais sinistra. Não
eram os ruídos, embora desse por si permanentemente à escuta, consciente deles
mesmo quando o rádio estava ligado. Não, era outra coisa.
Regressando
ao estúdio, susteve a respiração. Por uma fracção de segundo, não mais, uma
sombra movera-se perto da mesa do fundo. Pestanejou, e a sombra desapareceu; ou
nunca ali estivera. Lá fora, ouviu um corvo a chamar enquanto sobrevoava o vale,
a sua sombra uma pincelada veloz sobre as pedras quentes do pátio. Fora aquilo
que ela vira, a sombra de um pássaro. Aliviada, virou-se e regressou para
dentro de casa, no preciso momento em que o telefone da cozinha começou a
tocar. Steph, é Km. A voz animada parecia encher a casa de sol. Pensaste no meu
convite? Vem a Roma, Steph. Por favor. Podes trabalhar aqui em casa! O que quiseres.
Ando aqui a falar sozinha com as paredes do apartamento. Todos os meus amigos
se foram embora durante o Verão, ainda faltam semanas para eu partir para os
Lagos, e preciso de ti!» In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira,
2008, tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa,
2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.
Cortesia de PManuscrito/JDACT