quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

A Princesa Guerreira. Barbara Erskine. «Sentia a presença de algo ou de alguém. A observá-la. Sentia um par de olhos fixos na sua nuca. Está aí alguém?»

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«(…) Mas Stephanie já não sabia bem se tomara a decisão certa. Pousando o pincel, pegou num trapo manchado de tinta e limpou os dedos, franzindo um pouco o sobrolho enquanto o fazia. O som era tão subtil que mal o distinguira da música do rádio. Um estalido, não mais do que isso, vindo da outra ponta do estúdio. Passou os olhos pelas estantes carregadas de olaria, os sacos de barro, os frascos de esmalte, as latas de tinta na mesa encostada à parede. As pedras toscas da velha vacaria tinham sido caiadas, as seteiras medievais envidraçadas, as vigas tortas, no tecto alto, pintadas e guarnecidas, aqui e ali, de ganchos de ferro ornamentados, onde ela pendurava as ferramentas mais leves, e de um espanta-espíritos de vidro que tinia vagamente na corrente de ar, oferta de um dos seus muitos admiradores. Ei-lo, de novo. O estalido, seguido de um estrondo. Um pássaro ou outro animal devia ter entrado pela porta aberta, enquanto trabalhava, e começado a remexer nas estantes. Sem fazer barulho, empurrou o banco alto para trás e levantou-se. Vários minutos de cuidada investigação não lhe forneceram qualquer pista a respeito da origem do ruído, embora a sua inquietude crescesse.
Sentia a presença de algo ou de alguém. A observá-la. Sentia um par de olhos fixos na sua nuca. Está aí alguém? A sua própria voz soou-lhe nervosa. Dirigindo-se à porta, olhou lá para fora. A vacaria era perpendicular à casa, com as suas paredes caiadas e o telhado de velha ardósia galesa, unindo-se à cozinha por um corredor recém-construído. A porta onde ela se encontrava dava directamente para o exterior, para o antigo pátio da quinta, em forma de L, onde estacionava o carro, cercado de vasos de terracota com lavanda e alecrim. Franziu o sobrolho. O isolamento absoluto daquela velha quinta de montanha fora um dos seus encantos quando comprara a herdade. Acima de tudo, amava o silêncio, embora tivesse de admitir que a paz fosse de pouca dura, porque os seus amigos não paravam de lhe entrar, uns a seguir aos outros, pela porta dentro. Nos últimos tempos, porém, quando se encontrava sozinha, algo a perturbava. A sensação de que estava a ser observada. De que alguém, ou alguma coisa, se encontrava dentro de casa, com ela. Não um ser humano. Com isso, saberia lidar, julgava. Não, uma coisa mais subtil. Mais sinistra. Não eram os ruídos, embora desse por si permanentemente à escuta, consciente deles mesmo quando o rádio estava ligado. Não, era outra coisa.
Regressando ao estúdio, susteve a respiração. Por uma fracção de segundo, não mais, uma sombra movera-se perto da mesa do fundo. Pestanejou, e a sombra desapareceu; ou nunca ali estivera. Lá fora, ouviu um corvo a chamar enquanto sobrevoava o vale, a sua sombra uma pincelada veloz sobre as pedras quentes do pátio. Fora aquilo que ela vira, a sombra de um pássaro. Aliviada, virou-se e regressou para dentro de casa, no preciso momento em que o telefone da cozinha começou a tocar. Steph, é Km. A voz animada parecia encher a casa de sol. Pensaste no meu convite? Vem a Roma, Steph. Por favor. Podes trabalhar aqui em casa! O que quiseres. Ando aqui a falar sozinha com as paredes do apartamento. Todos os meus amigos se foram embora durante o Verão, ainda faltam semanas para eu partir para os Lagos, e preciso de ti!» In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008, tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.

Cortesia de PManuscrito/JDACT