«Nasci
em Beja, no chamado palácio dos Infantes, a 2 de Maio do ano da graça de 1458,
num dia soalheiro onde a transparência da atmosfera era tão límpida como as
águas que brotam da montanha, e fui coroada rainha de Portugal no ano de 1481. Chamo-me
Leonor Lencastre e sou infanta de Viseu. Ao contrário do meu irmão, que foi rei
porque o destino assim o quis, eu sempre soube que um dia seria rainha».
Beja,
paço ducal. 2 de Maio de 1458
«Dona
Beatriz encontrava-se no final de mais uma gravidez. Era a quinta vez que paria,
contudo só tinha dois filhos pequenos a correr pelos corredores no paço ducal. Os
outros três não tinham sobrevivido aos primeiros meses de vida. João, o primogénito,
entrou na antecâmara dos seus aposentos a chorar. O que se passa, meu filho?, perguntou-lhe
dona Beatriz com um ar preocupado e estendendo os braços para amparar o filho. O
Diogo bateu-me!, disse o filho com um ar muito indignado. E por que te bateu o teu
irmão?, questionou a mãe. Porque eu lhe chamei mentiroso, afirmou o pequeno com
um ar determinado. E por que razão lhe chamaste mentiroso?, perguntou-lhe novamente
dona Beatriz, já sem paciência. Ele diz que quando a cegonha chegar com o novo irmão,
a mãe vai deixar de gostar de nós, disse o rapaz já com lágrimas a formarem-se
nos olhos. Não, João, isso não vai acontecer. Podes ficar tranquilo, meu filho.
Foi o que eu lhe disse. Ele diz que quando aparece um novo bebé cá em casa, a
mãe dedica-lhe muita atenção, como aconteceu com os outros bebés.
O teu irmão é um tonto. Claro que
aos recém-nascidos é necessário dar muita atenção, porque são criaturas indefesas,
mas não é por isso que eu não dou mimos aos meus outros filhos. Dito isto, Beatriz
agarrou o filho e deu-lhe um abraço. João deixou-se ficar por alguns momentos
envolvido por aquele gesto tão meigo e reconfortante. Depois deu um pulo e disse:
o Diogo é mau e eu não quero brincar mais com ele. Nisto, Beatriz tem uma forte
pontada na zona dos rins e percebe que a hora tão ansiada estava a chegar. Chama
a sua aia e diz-lhe para levar os rapazes para o jardim. Aí poderiam dar um passeio
e entreter-se a procurar a cegonha, que não tardaria a chegar e a trazer uma nova
criança para o paço. Foi a muito custo que dona Beatriz se recolheu na sua câmara.
Passadas algumas horas, Beatriz dava à luz uma linda menina. Essa menina seria a
futura soberana do reino.
Desde o meu nascimento que meu pai
cismou que seria prometida ao herdeiro do trono e é essa a historia que vos quero
contar. Provenho da mais alta aristocracia portuguesa e sou a sexta filha do duque
de Viseu, o infante Fernando, e de sua mulher, dona Beatriz. Para vos retratar
a conjuntura política da época em que vivi, temos de recuar um pouco no tempo. Meu
pai, como vos referi, era duque de Viseu. Sendo irmão de rei (Afonso V) e filho
de rei (Duarte I), era uma figura de destaque no reino. Por se tratar do segundo
filho, não estava à partida destinado a assumir o trono. Esse papel caberia ao seu
irmão primogénito, Afonso V. Casou com minha mãe, Beatriz, que era sua prima direita,
uma vez que era filha do infante João (o quarto filho de João I) e de dona Isabel
de Barcelos (filha de Afonso, duque de Bragança). O casamento foi celebrado no Paço
Real de Alcáçovas, em Viana do Alentejo, no ano de 1447.
Após o casamento, meus pais foram
viver para o ducado de Beja e aí edificaram o paço ducal, junto ao Mosteiro de Nossa
Senhora da Conceição. Este paço ou Palácio dos Infantes, como lhe chamavam comunicava
directamente com o convento através de um passadiço que nos facilitava imenso a
vida quando nos dirigíamos para o serviço religioso, sempre que o frio apertava
ou quando a noite já caíra. Da casa onde eu nasci só resta o claustro, a igreja
e a sala do capítulo». In Paula Veiga, A Rainha Perfeitíssima,
2017, Edições Saída de Emergência, 2016/2017, ISBN 978-989-773-014-6.
Cortesia de ESdeEmergência/JDACT