domingo, 24 de dezembro de 2017

O Regresso do Soldado. Rebecca West. «Peguei na escova e fui até à janela, encostando a testa à vidraça e olhando distraidamente a paisagem»

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«Oh, não comeces já a inquietar-te, queixou-se Kitty. Nos tempos que correm, se uma mulher se vai preocupar só por não receber carta do marido há quinze dias!... Além disso, se ele estivesse nalgum lugar interessante, onde houvesse combates a sério, de certeza que arranjaria maneira de mo fazer saber, em vez de dizer apenas que está algures em França. Ele há-de estar bem. Estávamos sentadas no quarto do bebé. Eu não tinha intenção de voltar a entrar lá depois da morte da criança, mas deparei subitamente com Kitty a introduzir a chave na porta e detive-me a olhar lá para dentro, para aquele quarto de tecto alto, pintado de branco e de cores claras, tão insuportavelmente alegre e familiar, e que permanece, em todos os aspectos, como se ainda houvesse uma criança em casa. Era o primeiro dia bonito de Primavera, e o sol que atravessava as janelas de ogiva e as cortinas às flores era tão radioso que, noutro tempo, um punho rechonchudo ter-se-ia decerto erguido para apontar as translúcidas auréolas dos botões de rosa; o sol projectava grandes charcos de luz no soalho de cortiça azul e nos fofos tapetes estampados com animais estranhos, e desenhava raios dançarinos nas paredes pintadas de branco e azul, que teriam sido contempladas gravemente durante horas e horas. Incidia no cavalinho de baloiço, que Chris considerara uma prenda adequada para o primeiro aniversário do filho, revelando toda a beleza da sua superfície sarapintada; apanhava Mary e o seu cordeirinho na otomana forrada a chita. E no rebordo da lareira, sob a prezada gravura do tigre a rosnar, em posturas ao mesmo tempo abruptas e relaxadas, como se estivessem dispostos a divertir o dono com as suas brincadeiras mas não conseguissem impedir-se de dormitar num dia tão quente, estavam o urso de peluche, o chimpanzé, o cão branco de lã e o gato preto cujos olhos rolavam. Estava tudo ali, excepto Oliver. Dei meia volta, para não interromper a visita de Kitty ao seu morto.
Mas ela chamou-me. Jenny, vem cá. Vou secar o cabelo. E quando olhei de novo vi que o seu cabelo dourado estava caído sobre os ombros e que ela trazia sobre o vestido um casaco de seda estampado com botões de rosa. Parecia uma rapariga numa capa de revista, a tal ponto que quase esperei ver algures no seu corpo uma etiqueta marcando 7 pence. Kitty empurrou a cadeira de vime da ama do seu lugar junto à cadeira alta, colocando-a em frente à janela do meio. Venho sempre para aqui depois da Emery me lavar o cabelo; é o quarto mais soalheiro da casa. Preferia que o Chris não tivesse insistido em conservar o quarto como está, quando já não há nenhuma hipótese... Sentou-se, atirou o cabeio sobre as costas da cadeira, para que lhe desse o sol, e estendeu-me a sua escova de concha de tartaruga. Sê boazinha e escova-me o cabelo. Mas com cuidado, que a escova prende muito.
Peguei na escova e fui até à janela, encostando a testa à vidraça e olhando distraidamente a paisagem. Provavelmente conheceis a beleza daquela vista, pois quando Chris remodelou Baldry Court, ap´pos o seu casamento, entregou o projecto a uns arquitectos mais atreitos ao olhar conhecedor do manicuro do que à visão selvagem do artista, e juntos arranjaram maneira de converter aquele adorado espaço em objecto de infindáveis reportagens fotográficas para jornais ilustrados». In Rebecca West, O Regresso do Soldado, 1918/1980, Relógio d’Água, 2009, ISBN 978-989-641-072-8.

Cortesia de Rd’Água/JDACT