Norte
de Portugal. 1916
«(…) Por causa delas a sua mulher
tinha morrido. Por mais que quisesse ou tentasse, jamais amaria aquelas
meninas. Bernarda, uma sogra bem lúcida, pensou de imediato. O genro era um homem
trabalhador, correcto, viúvo jovem com duas recém-nascidas. Não faltariam
pretendentes. Ela sentia pela filha, mas era o que tinha de ser. Manuel se
casaria novamente, com uma mulher quase menina, provavelmente virgem, que
criaria as gêmeas como se fossem dela e daria continuidade à prole. Ele logo deixaria
o quarto e o luto. Passados dez dias, Manuel permanecia em silêncio. Trabalhava
de sol a sol, sem dizer uma palavra, comia pouco e dormia cedo. Não foi ao
enterro nem à missa de sétimo dia. Sequer olhava os bebés, que diria tocá-los.
Era como se não existissem. Nem do choro reclamava. Foi quando a sogra, num
misto de impaciência e raiva, foi directa ao assunto. Manuel, escuta, tu
perdeste a esposa, eu perdi a minha filha querida. Não podemos fazer nada. Mas
estas crianças estão aqui, e também perderam a mãe.
Elas precisam do pai, elas
precisam de um nome!, exclamou, enquanto apertava as mãos do genro. Manuel
levantou os olhos. Não havia lágrimas, apenas um vazio salpicado de tristeza e
desânimo. Pois dê a senhora o nome às meninas, porque, se for eu a fazê-lo, os
nomes hão-de ser dor e infelicidade. Levantou-se e deixou a sala rumo às
parreiras. A sogra respirou fundo e segurou o choro. Voltaria à Guarda para
fechar a casa e mudar-se de vez para a quinta. Era viúva e, a partir de agora,
só tinha as meninas, e as meninas a ela. Seriam suas filhas, lhes daria todo o amor
que tivesse e que viesse a ter. Escolheu os nomes, sem pensar muito. Nomes de
que a filha gostava: Clarice e Olívia.
A avó cumpriu a promessa. As
meninas foram crescendo sob asas enérgicas e, ao mesmo tempo, amorosas. Mal
viam o pai, que, se por um lado as ignorava, por outro não lhes deixava faltar
nada. Sentavam-se juntos durante as refeições, única exigência de Bernarda. Ele
chegava calado, comia, os olhos sempre baixos, jamais encarava as filhas.
Apenas uma vez foi ríspido. Num almoço de domingo, teria sido Clarice ou
Olívia?, uma delas tentou tocar o vasto bigode que lhe cobria o lábio superior.
Manuel afastou rapidamente a pequenina mão e gritou para que jamais o tocassem.
Não importava se foi Clarice ou Olívia, o facto é que as duas cumpriram a ordem
à risca. Tinham pouco mais de cinco anos. Naquele dia perceberam que, além de
não terem mãe, também não tinham pai. E o que importava, se afinal a avó valia
por todos? A vida seguiu assim até perto dos treze anos, quando de facto
perderam Manuel. Morreu dormindo, sorrindo. Ia encontrar a sua Josefina. Ao
verem o semblante do pai tão sereno e alegre, Clarice e Olívia soltaram uma
gargalhada. Pela primeira vez, beijaram o pai, beijaram muitas vezes, e também
o abraçaram. Ele agora ficaria em paz e feliz.
Norte
de Portugal. 1933
A morte de Manuel, quatro anos
antes, mudara a rotina da quinta. Bernarda assumiu as funções do genro, tendo
como braço direito a criada, que, depois de todos aqueles anos, recebia os
carinhos de filha e o amor das meninas. Lina era uma mulher de traços finos e
belos, mas tinha um defeito no quadril que fazia com que puxasse de uma perna.
A vida toda fora chamada de Manquinha. O apelido criou uma couraça, um muro em
torno do corpo pequenino mas nada frágil. A deficiência física era uma sequela
na alma, que se traduzia no ar carrancudo». In Luize Valente, Uma Praça em
Antuérpia, 2015, Saída de Emergência, colecção A História de Portugal em
Romances, 2015, ISBN 978-989-637-844-8.
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