«(…) Ainda antes mesmo de receber
a resposta definitiva do príncipe regente de Portugal, a invasão já fora decidida
há muito tempo. O seu comandante, o general Junot, em 5 de Setembro, já ultimava
os derradeiros preparativos. Muito bem. Amanhã mesmo, 18, partirão. Os olhos de
Jean-Andoche Junot brilharam de entusiasmo e emoção. O imperador fitou três dos
homens que estavam diante de si, um a um, como se os avaliasse mentalmente. A primeira
divisão do exército da Gironda terá o seu comando, Delaborde, com 9609 homens e
812 cavalos. Henri-François Delaborde, um homem de 42 anos, alto, aspecto distinto
e olhos brilhantes, bateu com os tacões das botas em sentido, ao mesmo tempo que
fazia uma vénia. Agradeço a confiança, Vossa Majestade. Napoleão fixou um homem
de 36 anos, sem o braço esquerdo, cuja manga do casaco estava dobrada. Este tinha
um aspecto sinistro e ameaçador. De cabelos escuros encaracolados e longas patilhas
no rosto antipático de feições vincadas, nariz comprido e fino, os olhos pequenos
e vivos de expressão cruel, reforçada pelos lábios muito finos que quase desapareciam
numa linha. Uma personagem perigosa, talvez a pior daquele grupo de militares.
Loison comandará a segunda divisão,
consistindo esta em 4984 homens e 109 cavalos. O general Henri-Louis Loison fez
um leve aceno de cabeça, mantendo-se imperturbável. A terceira pertencerá a Travot,
com 8389 homens e 620 cavalos. Jean-Pierre Travot, de 40 anos de idade, pôs-se em
sentido, muito sério, agradecendo. Possuía um rosto mais sereno, quase o oposto
de Loison. O general Kellerman comandará a cavalaria, a engenharia pertencerá ao
coronel Vincent e a artilharia ao general de brigada Traviel. Junot será o
comandante-em-chefe do exército. Três outros homens ainda não tinham falado,
esperando ordens. E os espanhóis, Majestade?, inquiriu Junot, com a familiaridade
da amizade de muitos anos com Bonaparte, quando era seu ajudante-de-campo, ainda
ele não era o imperador temido e sim um oficial, de origens humildes. Podemos contar
com eles como prometeram, com homens e mantimentos? Um sorriso astucioso surgiu
no rosto de Napoleão Bonaparte. Claro. A Espanha caiu ingenuamente na minha armadilha,
habilmente montada, vítima do rancor e ódio cegos que ainda vota a Portugal.
Foi facilmente manobrada, brilhantemente aliciada para o meu lado. Foi só
espicaçar-lhe a cobiça com um apetitoso isco. Aquele território que um dia lhe
pertenceu e que jamais deixou de cobiçar.
Napoleão pegou num documento que se
encontrava sobre a enorme secretária e mostrou-lhes, com um risinho malicioso. O
Tratado de Fontainebleau (assinado por Michel Duroc e E. Izquierdo, em representação
de França e Espanha, dividia Portugal em três fatias: Lusitânia Setentrional, região
entre o rio Minho e o rio Douro, um principado que seria governado pela rainha do
extinto reino da Etrúria, uma filha do rei de Espanha; Algarves, compreendendo
Alentejo e Algarve, território a partir do sul do Tejo, futuramente governado por
Manuel Godoy, com o título de rei; Resto de Portugal, compreendendo as províncias
da Estremadura, Beira e Trás-os-Montes, território importante estrategicamente devido
aos seus portos, devia ser governado directamente pela França. As colónias
portuguesas seriam divididas depois entre a Franca e a Espanha) que brevemente será
assinado...
Napoleão
Bonaparte sabia bem tocar nas feridas e influenciar quem desejava. Fora só sugerir
o plano implacável de retalhar Portugal em três partes, uma delas para França, outra
para Castela e a restante para Manuel Godoy, o primeiro-ministro do rei de
Espanha, para conseguir aliciar o reino espanhol para o seu lado. Isso fora relativamente
fácil. Espanha traía de novo o seu vizinho mais chegado, unido a ele por tantos
laços histórios e familiares. Um hermano como por vezes lhe chamava, quando lhe
era conveniente… Já anos antes, quando tropas portuguesas (campanha do
Rossilhão) se tinham juntado às espanholas, integradas na primeira aliança,
chefiada pelos ingleses, para deter a revolucionária França, a Espanha, súbita e
sub-repticiamente, fizera a paz (Tratado de Basileia, em22 de Julho de 1795, assinado
por Manuel Godoy, vindo-lhe daí o título de Príncipe da Paz) com a inimiga França
e atraiçoara Portugal e Inglaterra, esquecendo os motivos para se ter integrado
na aliança, vendo somente a contrapartida oferecida pelos franceses. O reino de
Portugal há muito cobiçado, não só pela excelente posição geográfica que ocupava,
mas também pelo vasto e apetecível império ultramarino, perdendo-se na altura Olivença (curto conflito militar entre
Portugal e Espanha, em 1801, conhecido jocosamente como Guerra das Laranjas,
onde se criou o problema de Olivença) para a paz se fazer entre os dois reinos».
In
Isabel Ricardo, A Revolução da Mulher das Pevides, 2015, Edições Saída de
Emergência, 2015, ISBN 978-989-637-855-4.
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