«(…) Deste casamento nasceram vários
filhos; seis rapazes de nome João, Diogo, Duarte, Dinis, Simão e Manuel, e três
raparigas chamadas Leonor (eu), Isabel e Catarina. Dos nove filhos que meus pais
trouxeram a este mundo, nem todos chegaram a idade adulta e dos que o conseguiram
nem todos sobreviveram. Mas talvez seja preferível falar-vos um pouco da vida de
cada um, com mais ou menos pormenor, porque estão intimamente ligados com a minha
própria existência. É provável que a parte mais surpreendente seja o facto de,
como já vos disse, ser também irmã de rei, porque uma sucessão de acontecimentos
insólitos levaram Manuel ao trono. Contudo, meu pai não era somente um segundo filho
relegado para um plano secundário, sem qualquer poder, bens ou honrarias. Teve a
sorte de ser perfilhado pelo seu tio, o infante Henrique, o (dito, jdact) Navegador, um dos
homens mais poderosos do reino. Quando o infante Henrique faleceu, dois anos
depois de eu nascer, meu pai herdou um vasto património.
Quando eu nasci, reinava Afonso V,
filho do monarca Duarte I e de dona Leonor de Aragão. Afonso V que era meu tio,
pela parte de meu pai, herdou o trono muito jovem. Depois de seu pai, Duarte I,
falecer, a Rainha viúva foi regente do reino. Contudo, o povo não gostava de ser
governado por uma mulher Aragonesa e a regência foi disputada entre ela e o seu
cunhado, o infante Pedro, que era então o duque de Coimbra. O infante Pedro governou
durante vários anos até Afonso V assumir o governo do reino. Afonso casou com uma
filha deste, a doce e bela Rainha dona Isabel de Avis. Seguiu-se um período
conturbado da nossa história, cheio de intrigas, rivalidades e disputas pelo poder
que acabou na Batalha de Alfarrobeira e na morte do infante Pedro. A Rainha, que
muito amava seu pai, ficou inconsolável e refugiou-se primeiro em Santarém e
mais tarde no Castelo de Óbidos.
Foi somente quando o infante João
nasceu, 1455, anos mais tarde, que o Rei concedeu um perdão generalizado a todos
aqueles que tinham participado na Batalha, reabilitando assim a memória do falecido
sogro, o infante Pedro. Pouco tempo depois de o herdeiro nascer a Rainha veio a
falecer em consequência de sequelas do parto (as fontes divergem na causa da
morte da Rainha, poderá ter sido sequelas do parto ou tuberculose). Uma vez mais
uma jovem rainha, que contava apenas com vinte e três anos, perdia a vida no
cumprimento do seu dever, o de dar um herdeiro ao reino. O Rei ficou tristíssimo,
porque desde a infância amava profundamente Isabel, e durante longos tempos não
quis sequer pensar em casar-se novamente. Mas valores e interesses políticos iriam
alterar esta situação e o Rei acabaria por casar, anos mais tarde, com a sua sobrinha
castelhana, Juana.
Embora Juana fosse filha da
infanta Joana (irmã de Afonso V) e de Henrique IV, rei de Castela e Leão,
muitas foram as dúvidas que surgiram sobre a sua paternidade. Constava na corte
que o rei padecia de doença que o impedia de consumar o coito, pelo que não tinha
condições para conceber um herdeiro. Contudo, segundo se diz, o engenho e a necessidade
de dar um herdeiro ao reino levou o rei a recorrer aos médicos judeus, que engenhosamente
iriam resolver o problema. Na altura, os físicos hebraicos eram os detentores dos
conhecimentos e das práticas médicas mais avançadas para a época e, por isso, levaram
a cabo um processo de concepção sem cópula, ou seja, a primeira inseminação assistida,
que resultou no nascimento desta linda princesinha. Certo é que o rei recebeu
esta criatura como sendo sua filha legítima e a infanta foi jurada sua herdeira.
Foi amada enquanto o seu pai foi vivo.
Mas a história desta sobrinha castelhana
é uma história triste, porque Juana, apesar do amor que seu pai lhe devotava, desde
o dia do seu nascimento, sempre representou, como vos irei contar, um embaraço para
o Reino de Castela e Aragão, porque nem todos acreditavam nos métodos utilizados
pelos médicos e desde muito cedo colocaram em causa a sua linhagem». In Paula
Veiga, A Rainha Perfeitíssima, 2017, Edições Saída de Emergência, 2016/2017,
ISBN 978-989-773-014-6.
Cortesia de ESdeEmergência/JDACT