Madre,
tengo miedo
«(…) O dia amanhece chuvoso.
Sancho gosta de dias assim, como se a cortina de água o mantivesse invisível. Costumava
cavalgar à chuva nos campos de Santo Tirso, até a tarde cair. Depois aguentava o
sermão de Teresa, do mestre do Trivium, do instrutor de armas, mudava o fato e dormia
a noite toda. Já preparado de forma modesta, antecipando o prazer da cavalgada,
bem cedo desce à sala anexa à cozinha. Ainda não há sinal de desjejum, nem de cozinheiros.
O único criado já a pé, um mancebo da sua idade, corre a chamá-los, mas ainda estão
ferrados no sono, até o uchão. O pequeno rei sente um nó na garganta quando o jovem
lhe traz as sobras da véspera. Quando, em tempo de meus avós, se atreviam a dar
as sobras ao rei? Não encontrei mais nada preparado, senhor Sancho, perdoai... Deixai,
não tendes culpa. E até aprovo essa medida de se apresentarem as sobras, tanto ao
rei como aos cortesãos. Encara o rosto do varão: quanto aos criados da copa e da
cozinha, dizei-lhes que o rei manda que passem a deixar a enxerga mais cedo. Sai
para o terreiro. Isidro Peres já aguarda com o palafrém aparelhado. Descem agora
a colina e atravessam o rio, morto, por cavalgar entre adémias e planícies
verdes para os lados da foz. Às notícias do agravamento da saúde do pai, Sancho
fechava-se na salinha de dona Urraca a ver o cadastro dos bens da nobreza, das igrejas,
das abadias, numa cópia que ela guardava das inquirições de há quase três anos.
Quanta riqueza acumulada pelas doações dos patronos, quanta discórdia pela apropriação
indevida de mais terras. Para que queriam tanto património? Se tão grandes fatias
de território pertenciam ao rei, ao clero e à nobreza, o que
sobraria para o povo?
Já a viver em Coimbra, depois da morte
da mãe, gostava de repetir as cavalgadas que fazia em Riba Douro por campos lhanos
a perder de vista. E inspirando o ar da manhã em cada estação, gravava a formosa
paisagem na retina: o fumo a sair dos casais, nos dias frios de Inverno; no
tempo das lavras foreiros falando às bestas, como iguais; os campos lembrando jardins,
na Primavera; as searas douradas, no Verão, moios de trigo como padrões ao sol,
casas orlando o rio de margens ainda instáveis. Mal sabe do burburinho levantado
pela sua ausência: quem deixou o rei abalar sozinho, com quem foi, que privados
sabiam das suas intenções. Irmanados no mesmo interesse de não o perderem de vista,
tudo farão, de futuro, para que haja sempre alguém a vigiá-lo. A câmara do rei deve
passar para o outro lado do paço, onde dormimos nós, grita Abril Peres, não pode
distrair-se com questões familiares. E um criado deve fazer plantão à porta, dia
e noite, de modo a pedir ajuda se ele resolver sair, remata Gonçalo Mendes.
Mas Sancho não está sozinho. Apreendeu o
que lhe ensinaram, deu ouvidos à intuição que sempre lhe recomendou equilíbrio nas
acções. Isidro combinou de véspera com dois vilãos da confiança do alcaide, que
os aguardassem à saída da ponte. O seu rei queria olhar de longe o limite das terras
regalengas, às vezes ameaçado, e ouvir as queixas dos camponeses. Depois de cavalgarem
cinco milhas, Isidro Peres aponta uma herdade sob o domínio dos crúzios. Talvez
Sancho queira partilhar a refeição dos cultivadores, num casebre de cobertura precária.
Assim fazem. Os dois vilãos levam peixota, que eles condimentam com ervas de cheiro
por falta de sal, muito caro para as bolsas pobres. Dizem-lhe que ali a vida é dura.
Chovendo muito, dormem tapados com sacos de burel ou de estamenha, padecendo de
frio e quantas vezes de fome. Esvai-se a saúde e o ânimo dos varões para investir
energias nas terras ou nas armas, senhor, reclama um ancião sem dentes. Uma
cadeia bem oleada, se os senhores da terra o entendessem, faria com que os
braços mourejassem com mais força, comenta outro mais novo. E convidam-no para
nova refeição, prometendo oferecer uma lebre no espeto se mandar dizer qual o dia
em que pensa honrá-los com outra visita». In Maria Helena Ventura, Conheces
Sancho? Edições Saída de Emergência, 2016, ISBN 978-989-637-951-3.
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