Leonor.
1755-1770
«(…)
Pelas nove da manhã desse
fatídico sábado de Todos os Santos, dia 1 de Novembro de 1755, a pequena Leonor
saltou da cama. Sem chamar pelas criadas, dirigiu-se em bicos dos pés ao
toucador para admirar os presentes que recebera na véspera, pelos seus cinco
anos. O carrossel de música do avô Alorna, com figurinhas que giravam,
sincronizadas, numa melodia repetida; a boneca de madeira vestida a preceito,
que lhe tinham dado os avós Távora; e o serviço de chá em miniatura, de fina
porcelana, com rosas pintadas, que lhe oferecera a tia Atouguia. Era lindo,
pensou, podia brincar com a Maria todo o dia, a começar já pelo almoço. Deu uma
corrida até ao quarto da irmã, chamando por ela com gritos de entusiasmo e
sacudindo-a com força para que acordasse. Mana, mana, venha brincar! A Perpétua
está com fome, não vê? Venha, mana, venha! Habituada a obedecer prontamente ao
que a irmã mais velha lhe ordenasse, Maria saiu da cama, estremunhada. Tinham
apenas um ano de diferença mas, apesar do feitio forte de Leonor, que era
sempre a mentora de todas as brincadeiras e fantasias, entendiam-se na
perfeição. Maria, que ainda esfregava os olhos, ensonada, seguiu a irmã até ao quarto, sem contestar.
Sentaram-se as duas no chão e Leonor estendeu-lhe a boneca de cara pintada e
fita vermelha na cabeça.
Tome! Fique com a Perpétua, vá! Que
linda é!, gabou Maria. Gosta, Leonor? Muito! É janota e galante, parece-se
comigo. Segure a mana nela, vou servir o chá! Só quero leite!, disse Maria. Leonor,
pensativa, acabou por consentir. Leite, seja…, e uns docinhos, continuou, com
os olhos a brilharem de felicidade, fingindo servir o leite à irmã e os doces à
boneca. Oxalá o Pedro não venha aqui estragar tudo… Ai estas meninas, estas
meninas! Era Feliciana que entrava no quarto, abanando a cabeça, depois de uma
noite bem-dormida. Se a senhora vossa mãe vos vê aqui, de camisa e descalças… O
que vale é que está calor, parece um dia de Primavera, nem uma nuvem no céu!,
comentou, espreitando pela janela. Brincar é no quarto dos brinquedos, ou as
meninas não sabem? Como se sente hoje, menina Leonor? Sua mãe estava em
cuidados, passou mal? Absorta no chá que fantasiava, Leonor nem respondeu mas a
palidez e as olheiras escuras que a noite lhe deixara diziam muito. Vamos lá
guardar a brincadeira para depois da missa. É hora do almoço! Menina Leonor, está a ouvir?
Perante o silêncio distraído de Leonor,
Feliciana voltou-se para Maria: menina Maria! Sim, Feliciana?, respondeu a mais
nova, erguendo os olhos para a criada. Vamos, venha daí, seja obediente. Não!,
interrompeu Leonor. A Maria só vai no fim do chá. Acostumada à docilidade de
Maria e à personalidade intempestiva de Leonor, Feliciana saiu do quarto. Tinha
de ir, sem mais delongas, avisar a criada de dona Leonor de que as meninas
ainda não estavam vestidas para a missa na Sé, ali a dois passos do Limoeiro. Embora
pouco passasse das nove da manhã, já se ouviam os brados de João Almeida
Portugal a chamar pelo estribeiro-mor e pelo cocheiro, enquanto descia a
escadaria do palácio. Não gostava de chegar atrasado onde quer que fosse». In
Maria Lopo de Carvalho, Marquesa de Alorna, Oficina do Livro, 2011, ISBN
978-989-555-554-3.
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