«(…) Depois mergulhámos no mutismo
retemperador de quem se sente resignado e afogámos a tristeza em novas
encomendas no bar, eu sempre fiel ao meu copo de whisky, ela agarrada ao seu
cálice de vinho do Porto. Tudo se passou então com uma velocidade estonteante.
Os acontecimentos começaram a precipitar-se quando, uma hora mais tarde, um
empregado do hotel se aproximou de mim e anunciou um telefonema na recepção. Do
estrangeiro, esclareceu ele com urgência na voz, como se nada existisse de mais
importante que uma chamada do estrangeiro. Estranhei a circunstância, não havia
muita gente que estivesse a par do meu paradeiro e as chamadas internacionais
eram de facto raras, mas a realidade é que havia um telefonema para mim e
naturalmente fui atender. M’sieur Sarkisian?, perguntou a voz do outro lado,
com um sotaque estranho, talvez da Europa Central. Krikor Sarkisian? Sou eu
mesmo. Quem fala? Daqui Mehmet Bey. Ouvia-se muito mal, a linha telefónica
estralejava de ruídos e assobios e a voz do outro lado parecia vir do fundo de
um longo túnel, decerto lançada de uma cidade longínqua do outro lado da
Europa. Quem? Mehmet Bey. O contacto do seu pai em Istambul. Um turco. Desde a
minha juventude que aprendera a desconfiar dos Turcos. Sofri tanto às mãos
dessa gente que por eles não me sobrava um pingo de simpatia. Fiquei por isso
de pé atrás. Ah, como está?, cumprimentei-o com a voz gelada. Em que lhe posso
ser útil? Encontrei-a!, exclamou ele num tom estranhamente triunfal, quase
eufórico. Encontrei-a! Nunca me esquecerei destas palavras gritadas de tão
longe e que me chegaram como um miado débil; ainda hoje as escuto nos meus
ouvidos, um eco doce que o tempo aprisionou. Confesso, para ser sincero, que a
princípio não entendi. Já se tinham passado tantos anos ... Como julguei que o
senhor Bey era um dos homens contratados pelo meu pai para identificar obras de
arte pelos quatro cantos da Europa, pensei até que se estaria a referir a uma
peça qualquer que tivesse localizado no mercado de Istambul. Talvez um quadro,
uma moeda antiga, um tesouro da tapeçaria persa ou um vaso chinês. Encontrou-a?
Desculpe, mas agora não tenho cabeça para falar sobre esses assuntos. Por esta
altura já ambos gritávamos ao bocal dos nossos aparelhos, num esforço caricato
de nos fazermos ouvir nas duas extremidades do túnel em que se transformara
aquela chamada, um e outro em cada uma das pontas meridionais da Europa. Lembra-se
da busca ordenada pelo seu pai e pelo meu, há uns quarenta anos, de uma senhora
desaparecida?, insistiu o homem do outro lado da linha. Encontrei-a! O meu
coração deu um salto no momento em que compreendi enfim o que me era dito. Senti
o equilíbrio fugir-me e tive de me apoiar ao balcão da recepção, tão violento e
profundo foi o choque. Fiquei um longo instante sem saber o que dizer, na
verdade incapaz de pronunciar uma palavra que fosse, a mão sobre os lábios e
atordoado com a notícia, querendo acreditar mas receando fazê-lo. Seria
possível? Teria ela sido mesmo encontrada? Alô? Senhor Sarkisian? Está a
ouvir-me? Sim, sim, respondi de forma quase maquinal, tentando ainda
recompor-me das emoções que o anúncio alvoroçara.
Estou aqui. Percebeu o que lhe disse? Eu ..., tem a certeza de que a
encontrou? Está seguro de que é ela? Não poderá ser outra pessoa? É ela!,
insistiu o turco com a ênfase de quem não tinha a mínima dúvida do que
afirmava. Falei com a senhora e tudo. Está confirmadíssimo. É ela. Foi como se
se tivesse aberto em mim nesse instante um dique fechado há exactamente trinta
e nove anos. Dei comigo a soluçar, desamparado e ao abandono, um abrupto mar de
lágrimas a embaciar-me os olhos. Apercebi-me da presença de madame Duprés ao
meu lado e pensei que me tinha vindo confortar, mas, no meio daquela situação,
como se o destino se enchesse de malícia e tudo quisesse complicar, compreendi
que ela trazia urgência no olhar. Vencendo a vaga de emoções que me turvava o
raciocínio, fiz um esforço para me dominar. O teu pai despertou, ouvi-a dizer.
Vem depressa! Vem antes que ele se vá!
Alô, senhor Sarkisian?, perguntava ao
mesmo tempo a voz do outro lado da linha. Está a ouvir me? Fitei-a e percebi
que o meu pai tinha prioridade. Olhei para o telefone negro e decidi que também
o turco tinha prioridade. Para onde devia voltar-me? O que fazer? A minha
confusão era total, parecia que uma orquestra havia encetado uma sinfonia
desalinhada, cada instrumento a tocar para o seu lado e eu ali perdido como um
maestro incompetente, incapaz de coordenar a cacofonia em que se transformara
aquele instante de pura indecisão. Eu ... eu ... Madame Duprés puxou-me pela
mão. Vem depressa!, insistiu. É a última oportunidade! Senhor Sarkisian?,
chamava o turco. Alô? Alô? Em definitivo, e considerando as circunstâncias, o
meu pai estava à frente de tudo o resto. Senhor Bey, disse apressadamente para
o bocal do telefone. Agora não posso falar. Onde nos poderemos encontrar? Na
próxima segunda-feira, ao meio-dia, na recepção do Pera Palace, em Istambul,
devolveu ele com a prontidão de quem já tinha tudo planeado. Está bem para si? Vemo-nos
segunda-feira. Desliguei o telefone e corri atrás de madame Duprés, que subia
já as escadas na companhia do doutor Fonseca, o médico que o meu pai contratara
logo que se instalou em Lisboa. Chegámos ao primeiro andar e dirigimo-nos à suite
que ele ocupava. Cruzei a porta e mergulhei na penumbra. As cortinas estavam
corridas, como se um véu opaco assombrasse o quarto, e pairava no ar o cheiro
característico das antecâmaras da morte. Os lençóis cobriam a cama, brancos
como uma mortalha asséptica, a flutuar ao ritmo pausado da respiração. Ao
chegar-me à cabeceira, porém, apercebi-me de que ele tinha os olhos abertos,
baços de torpor mas ainda com uma centelha de vida a animá-los». In José
Rodrigues Santos, O Homem de Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN
978-989-616-549-9.
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