terça-feira, 5 de dezembro de 2017

A Musa de Camões. Maria Helena Ventura. «Deve achar-me uma fortaleza porque me pede a mercê de algumas horas por dia, para desabafar. E com um sorriso polido aguarda o meu assentimento»

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O Outono da Saudade
«(…) Do criado sinto um reconhecimento humilde. Mais incomodado com o descontrolo de seu amo do que consigo, volta a olhar-me, agora menos à vontade. Na sua terra de origem os homens raramente choram, não pedem quando têm direito, lutam até à morte por aquilo que desejam. Mas compreende quem precisa deixar escoar a mágoa tanto tempo guardada em segredo, como aquele a quem serve. Conhece-lhe a profundidade da dor pelos vincos do rosto, caminhos de lágrimas choradas na solidão das noites. Por certo amanhã há-de querer voltar. Misturado na romagem de saudade encontrará um canto seu, uma nesga de espaço-tempo para murmurar, em profundo recolhimento, tudo o que não conseguiu dizer em vida. Antecipo-me aos dois, saindo para o átrio do convento. Quando se aproximam, baixo-me a compor o sapato para não encarar a dor de nenhum deles. Bem sei que não é o momento para fazer saudações. Deixo que Camões avance um pouco, arrimado à muleta, e faço um sinal ao criado, ligeiramente atrás. Travo conversa com ele, procurando imitar-lhe o jeito suave. Responde afavelmente, com infinita doçura, como se desejasse há muito tempo alguém para se escorar. Digo-lhe quem sou, porque me acheguei a ambos numa hora destas, coisas de pouca novidade para quem está habituado a decifrar o rosto das pessoas. Sabe muito, pelo pouco que ouve, e garante-me que me conhece muito bem... Também já me viu uma ou duas vezes perto de Sua Alteza a Infanta dona Maria, a mesma que seu amo vem nomeando todos os dias dos anos em que partilham a mesma casa. Deve achar-me uma fortaleza porque me pede a mercê de algumas horas por dia, para desabafar. E com um sorriso polido aguarda o meu assentimento.
Passamos a encontrar-nos pelas manhãs, depois da ronda dele para arranjar alimento ou esmolar às escondidas, como já percebi mais do que uma vez. Eu falo da Infanta até aliviar a saudade, ele conta-me como vem passando Camões depois da morte dela. Discorremos ainda sobre o que os uniu, aquilo que os separou, comentamos como podia ter sido comparando, no fim, a incerteza da vida que levamos. A natureza íntima de Camões parece ter mudado no trato, na falta de vontade para escrever. Só a pouca abastança continua igual. A ida habitual de seu amo ao convento, confessa o jau, não é tanto pela satisfação da conversa como pelo pretexto de trazer alimento que os frades lhe dispensam. Garante-me ainda que, não havendo até à data provimento da tença prometida, a noite dos funerais foi uma noite de fome. Sem ânimo para sair, nada mais tinham que uma côdea de pão e um chá de folhas de limoeiro do quintal da vizinha.
Olho-o fixamente. Afinal precisam pedir até o pão, enquanto do lado da fazenda real não sopram ventos favoráveis. Difícil será, porquanto as medidas da coroa desvalorizam a moeda, encarecem os bens essenciais, até os moios de centeio..., um alqueire custa o que não ganha um homem e o trigo vem de fora. Vale-lhes a caridade de um, dois nobres amigos, e os limões acabados de colher, entregues sobre o muro que separa as casas. Às vezes mantém dois dedos de conversa com a vizinha, uma mulher do povo, acompanhados de conselhos e revelações que melhor o fazem entender uma cultura tão diferente da sua. Já sentiu o aroma de um chá de folhas verdes? Depois de sentir a primeira vez nunca mais dispensa, quando seu amo se afunda em cogitações e o armário está vazio. Para Camões mais importante que o alimento do corpo é poder saborear o silêncio, para rever generosamente os últimos vinte e três anos e um pouco mais atrás, quando a senhora Infanta parecia corresponder discretamente à sua admiração. Duas ou três vezes lhe sentiu de muito perto o perfume, o olhar mais terno a envolver as palavras, e esses raros momentos encheram-lhe os dias e noites atormentadas, no reino e fora dele, duram até hoje e mais além hão-de durar. Ainda que arrastando pelas vielas os danos causados pelos grilhões e pela revolta interior, leves serão sempre as lembranças daqueles momentos.
Todas as manhãs claras em que as tardes começam a sobrepor-se, confunde com o céu dos olhos dela. Deixa entrar essas frinchas luminosas no pensamento, os vultos que viu passar aquela madrugada na capela do paço da Ribeira, rente à coluna de pedra, tão fria como o vão da janela onde pousa os cotovelos, a ver a luz que se escoa. Não tinha intenção de perturbá-la. Admirava-lhe tanto a cultura superior, a graça que transbordava da gentil figura que nunca ousaria nada que lhe desse cuidado. Costumava até segui-la de longe, depois que lhe disseram como apreciava as suas rimas, mas naquele dia procurava dar uma palavra a dona Leonor Noronha, prima de seu antigo amo, quase a chegar da missão na embaixada de França. Convinha-lhe chegar às falas com ele, recuperar o antigo lugar de escudeiro que lhe fora retirado antes de ir para Ceuta. Havia fortes razões para não lhe perdoarem, mas sendo a prima a interceder, quem sabe se não seria mais prontamente atendido? Estava tão farto de viver de forma indigna, sem maior mantimento que uns míseros reais no bolso, que ousava procurar a dama ali mesmo, na igreja onde costumava ir de manhã bem cedo». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT