«(…) Passara um mês e alguém o procurara
no centro de acolhimento. Ao vê-lo, o homem apressara o passo idoso, chamara-o pelo
nome, prometera tirá-lo dali, levá-lo para França e ensinar-lhe a língua pelas palavras
dos mestres. Só então celebraram a dor do reencontro com um abraço que durou doze
anos. Quando o homem morreu, ele partiu de Marselha, levando consigo a mala azul
e dinheiro para comprar uma livraria em Paris. Durante anos, ignorara a erosão do
tempo, mas agora os dias repetiam-se cada vez mais iguais. Ultimamente os livros
já não eram terminados e as visitas de Fidelia à mãe tornavam-se mais frequentes
e prolongadas. O livreiro valia-se então das trivialidades que restavam, o que é
natural quando a vida e o homem se vão despedindo por mútuo consentimento. Jerôme,
o do café, continuava a aparecer às seis da tarde com a garrafa de pastis e dois
copos na algibeira do avental. Bebiam durante os vinte minutos cumpridos à risca,
quantas vezes sem palavras para trocar, até Jerôme sair para fumar no passeio e
fechar o café.
Ele, que pensava muitas vezes nestas
coisas, conformou-se por estar ali a um domingo, sentado à escrivaninha. Deu por
si a tatear o rosto emoldurado da amante. Lembrou-se do dia em que a conhecera,
mas já não do que sentira, e conformou-se outra vez. Endireitou o retrato de Fidelia
como se o pudesse ver. Aquele era o único dia da semana em que a livraria encerrava
ao público, mas nem isso o mantivera em casa. Na verdade, nos últimos meses, não
se lembrava de ter passado um só domingo sem ser ali, exactamente ali, no recesso
mais escuro da loja. Fidelia chegava cada vez mais tarde nas noites de sábado e
passava o dia na cama, agoniada. Talvez fosse prudente resguardar a mãe de tais
noitadas, sugerira ele um dia, mas arrependera-se de a ter provocado e prometera
continuar cego. Derrubou o retrato de Fidelia como se não o pudesse ver.
Então decidiu ouvir música. Com gestos
pouco firmes, alcançou o rádio que servia de pisa-papéis e ligou-o. O som era fraco,
de um acordeão, mas distinguiu perfeitamente o dedilhar de um contrabaixo no
meio da estática. A amargura da música era quase festiva, e ele deixou-se contagiar
e cantou baixinho, parecia um rumorejo, como se respondesse aos instrumentos
com coisas que não deveriam ser escutadas. A meio da terceira canção, soaram duas
pancadas na vidraça. Não poderia ser Fidelia, já que, mesmo ressuscitada, nunca
apareceria na loia a um domingo. Por isso ignorou a visita e retomou o diálogo.
Mais pancadas, impacientes. Ergueu instintivamente o rosto e continuou impassível.
A seguir, nada, apenas a música a extinguir-se para dar voz ao locutor. Porém, uma
hora depois, ouviu o barulho apressado de duas voltas de chave e soube que o fim
da manhã estava condenado. As desculpas castelhanas de Fidelia irromperam peia livraria,
mais o som de uma carteira atirada com forca para trás do balcão.
Claro! Não vinha só, ele distinguiu
outros passos, passos de homem. Perdóneme, desculpou-se Fidelia, afogueada. Vim
a pé. Espere um pouco, ele deve estar no fundo da loja. O visitante olhava para
todo o lado, parecia nem dar por ela, enquanto o livreiro esperava que a amante
se aproximasse. Despacha-te, sussurrou a rapariga. Ele telefonou-te, tinhas acabado
de sair. Quer falar contigo, mexe-te, diz que é importante. O cego levantou-se devagar
sem desligar o rádio. Caminhando à sua frente, Fidelia começava finalmente a despertar:
tirou-me da cama, cabrón, já sabia que não lhe abrias a porta. Quando chegaram ao
vestíbulo, Fidelia forçou um sorriso. O meu marido. O livreiro, que não era marido
dela, estendeu a mão, indiferente à localização do outro. O visitante deu três
passos em frente e apertou-lha quase de raspão. Nenhum disse nada». In João
Pinto Coelho, Os Loucos da Rua Mazur, prémio Leya, Leya SA, 2017, ISBN
978-989-660-457-8.
Cortesia de Leya/JDACT