«(…) Steph olhou, inquieta, por
cima do ombro, para a porta que comunicava com o estúdio. Quando Kim a
convidara pela primeira vez, ela tinha hesitado. Roma, no Verão, seria
insuportavelmente quente e barulhenta. Kinr, viúva após menos de dez anos de
casamento com o seu encantador, demasiado-bom-para-ser-verdade, extremoso homem
mais velho, e inchada no seu estupendo apartamento no interior de um palazzo, nada
mais, nada menos, com a considerável fortuna do falecido toda para si,
simplesmente não podia sentir-se tão desolada quanto dava a entender. Por outro
lado, talvez se sentisse, ou talvez Steph não conseguisse ignorar o irresistível
charme de Roma. Afinal, que tinha ela a perder? No máximo, uma semana e pouco
de dedicação às suas peças de olaria. Menos do que isso, se viesse a
verificar-se que ela e Kim já não se davam tão bem como dantes, na altura em
que todos frequentavam a mesma universidade. Meia hora depois, Steph já tinha
ligado o computador, reservado o voo e estava a revolver o armário à procura da
sua mala de viagem.
Jess sorriu, com melancolia,
enquanto a voz da irmã falava ininterruptamente, até fazer, por fim, uma pausa.
Jess? Estás aí? Não ficas feliz por mim? Tu sabias que Kim e eu nos tínhamos mantido
em contacto, não sabias? Já se ouvia, essa entoação galesa, na voz de Steph. Isso
é fantástico, Steph. Só que... Jess fez uma careta. Eu ia perguntar-te se podia
ir a Ty Bran passar uma parte do Verão. Estou farta de Londres e um pouco
desesperada por fazer uma pausa. Quero ir para um lugar onde ninguém me
encontre. Quero alguma paz para pintar. Talvez para repensar o meu estilo de
vida. Estou a ponderar uma mudança de carreira. Queria ver se consigo
aguentar-me como pintora. Não valia a pena contar-lhe a verdadeira razão,
estragar o dia a Steph; não valia a pena fazê-la sentir-se na obrigação de
cancelar as suas férias.
Mas é formidável! O entusiasmo de
Steph toldara-lhe a leitura, geralmente perspicaz, dos estados de espírito da irmã.
Vem, és muito bem-vinda. Na verdade, fico contente por ter alguém a tomar conta
da casa. As minhas plantas de vaso precisam de ser regadas. Se vieres, é
perfeito! Terás a paz que procuras para pintar e meditar tudo o que quiseres! Pousando
o auscultador, Jess deixou-se ficar um momento sentada, de olhos fixos na
janela. Estaria a agir bem? Permitindo que alguém a afastasse do trabalho de
que gostava, do apartamento que adorava, da cidade que, aos poucos, a fora
seduzindo. Permitindo a esse alguém pensar que escapara àquilo impune. Escapara
impune. Não haveria polícia. Nem identificação. Não haveria a mais pequena
repercussão. Quando a luz do Sol rompeu pela janela e incidiu no tapete com motivos
verde-claros, iluminando ao pormenor cada figura de linhas cruzadas que compunha
o padrão, Jess ouviu a porta da rua abrir-se com estrondo e passos nas escadas.
Susteve a respiração. Devagar, os passos aproximaram-se, tornaram-se mais
firmes, mais ruidosos, mais masculinos. Engoliu em seco, o suor despontando-lhe
entre as omoplatas. Teria fechado a porta do apartamento? Claro que sim. Isso
convertera-se mesmo numa obsessão. Permaneceu sentada, incapaz de mover-se, os olhos
pregados na maçaneta da porta, a ouvir o som que agora enchia o apartamento. Os
passos alcançaram o patamar, lá fora, e ela ouviu-os parar. Por momentos, o
silêncio instalou-se, absoluto. Depois, lentamente, os passos recomeçaram,
subindo para o andar de cima. Só então se deu conta de que não estava a
respirar bem. Tremia dos pés à cabeça. Levantando-se de um salto, dirigiu-se ao
átrio de entrada e verificou a corrente da porta. Estava no seu lugar, segura,
tal como o ferrolho e a fechadura de segurança.
Foi nesse momento, como já era
hábito, que o medo se converteu em fúria. Ele fizera-lhe aquilo! Ninguém...
Ninguém tinha o direito de aterrorizá-la daquela maneira, de fazê-la sentir-se vulnerável,
ameaçada, na sua própria casa! Era um ultraje. Odiava o homem que lhe tinha
feito aquilo, e odiava-se a si própria por se ter transformado numa vítima. Recusava-se
a ser uma vítima. Teria de recuperar, de alguma maneira, a confiança perdida. Lá
fora, era melhor. Sentia-se segura nas ruas movimentadas e barrulhentas, nas lojas
apinhadas, ou sentada a uma mesa de esplanada, a beber um expresso com espuma de
leite, num desses cafés de passeio, a ver os pombos cirandar, intrépidos, por entre
os pés dos transeuntes, esquivando-se das rodas dos carrinhos de bebé e das bicicletas.
No pub, do outro lado da rua, viam-se, como grinaldas, estandartes de pano esfarrapados
pelos ventos de Inverno e ainda suspensos, ao fim de vários meses. Duas refeições
pelo preço de uma. Veja aqui o jogo de hoje.
Multidões
aguardavam, à sua frente, a oportunidade de atravessar a rua, contidas pela
vedação que as impedia de derramarem-se no meio do trânsito. Entretanto, as luzes
dos semáforos mudaram, a enchente fluiu para o outro lado; atrás, formou-se mais
um grupo. Por cima dela, jazia um balão prateado, em fiapos, como um pássaro morto,
na copa de uma árvore, agitando as asas no meio da folhagem. No fim da rua, o tráfego
redemoinhava, na sua infinita coreografia, à volta da mini-rotunda. Jess beberricou
o café, relutante em sair daquele lugar. O ruído era inexorável; ensurdecedor. Máquinas;
música; o arrulho dos pombos nos rebordos dos prédios; pessoas a conversar, a rir,
a gritar, a praguejar; a buzina de um camião alertando para a inversão de
marcha; telemóveis a gemer de segundos em segundos, os seus insistentes toques uma
cacofonia interminável e egoísta, tentando sobrepor-se à gritaria roufenha, crescente.
Ali, costumava sentir-se em segurança; em casa. De repente, odiava tudo aquilo.
O que ela queria era silêncio». In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira,
2008, tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa,
2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.
Cortesia
de PManuscrito/JDACT