Catarina
Ataíde. Igreja das Chagas, Sexta-feira Santa, 16 de Março, 1544
«(…)
Era Luís Vaz um donzel arruivado de fartas barbas, que vira há breves instantes
a cumprimentar o Chiado. Tinha cabelo de ondas largas e olhar penetrante e
vinha coberto por um gibão azul-escuro, inteiriço, calções tufados do mesmo tom
e meias negras. Fiz-lhe um cumprimento de cabeça, e dirigi-me ao banco lateral,
perto do altar-mor junto às outras damas da Rainha. Reparou em ti, avisou-me
logo dona Joana, a minha melhor amiga, levantando-me o queixo com a mão. Estás
cheia de sorte... ou de azar! Fiz-me de tola, procurando uma página perdida no
missal. Quem?, segredei-lhe, ajeitando o véu que me cobria o rosto, para depois
me pôr outra vez à procura da maldita página. Nunca acho a oração, e com estas
luvas pior ainda. Quem haveria de ser? O poeta, explicou-me, com uma careta cómica,
chamam-lhe o Cisne do Tejo! O Chiado? Que tolice! Conhecemo-nos há um ror de
tempo. Não, tonta, falo de Luís Vaz.
Elevou os olhos ao céu, abanando
a cabeça e fazendo balançar os brincos de pérolas. Corei. Luís Vaz? Até nas
suas mãos de dedos esguios e unhas roídas tinha atentado, mas sabia que não
podia deixar transparecer uma gota de curiosidade. Coisa alguma me podia
denunciar, o que quer que fosse que ali mostrasse daria logo azo a uma
roda-viva de intrigas cortesãs. E, afinal, o que de mais tinha Luís Vaz? Luís
Vaz, caramba! Na sua voz havia o timbre do orgulho. O poeta mais talentoso e
janota da nossa cidade. Pois não sabes? É o mestre de António Noronha, o
morgado dos condes de Linhares, e os seus ais de amor são por de mais
celebrados, e dizem que também validos, por muitas e desvairadas damas!
A meus ais
peço-vos que lhes valhais,
Damas de Amor tão validas,
que nunca tal dor sintais
que queirais,
onde
não sejais queridas.
Sei bem, sei bem, ora sus! Não
exaltes o que foi tão-só um gesto de cortesia. Já vinha atrasada e o mancebo
fez-me entrar abrindo a porta a uma dama, como compete a todo e qualquer
mancebo. Deixa-te de rodeios, Catarina, que bem sabes que te leio nos olhos
tudo o que não confessas. Luís Vaz ousa nas rimas e ousa nas prosas. Filou-te
como falcão a presa mal te viu subindo as escadas! Previno-te que é sedutor
consumado. Leva as noites no Mal-Cozinhado, esse antro que arde de fedor a
vinho, a vapores e a pó de enxofre, misturado com o ranço nauseabundo das
mulheres que o frequentam; e leva os dias no palácio dos Linhares. Dizem que erra
pelas ruas sinuosas de Alfama e é vezeiro em brigas e duelos, é folgazão como
poucos, e poucas são as que alcançam escapar-lhe. Não lhe caias no ardil!
Supunha que Joana falasse verdade.
Folgazão ou não, todos lhe reconheciam as virtudes. Corria que o mestre de
António tinha um saber tão requintado e uma cultura de tal sorte profunda que
secava tudo em seu redor. Ninguém sabia ao certo onde Luís Vaz colhera tanto e
tamanho saber, pois que só por curto tempo cursara na Universidade de Coimbra.
O infante João Manuel, o único varão vivo dos Reis, era íntimo amigo de António
Noronha, os dois passam muito tempo juntos a jogar a péla e a cavalgar pelos campos
à desfilada, e já bastas vezes os vira no Paço de Almeirim. E tanto diziam da
desmesurada erudição do mestre como desdiziam do encanto que dona Violante lhe
achava. Porém, nunca antes lhe tinha posto a vista em cima». In
Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
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