Catarina
Ataíde. Igreja das Chagas, Sexta-feira Santa, 16 de Março, 1544
«(…) Com tudo aquilo, não
prestava grande atenção à cerimónia, que Deus me perdoe. Mal podia esperar pela
hora de saída. Estaria Luís Vaz no adro? Não ousei voltar-me nos bancos para o
procurar no meio da multidão de fiéis que ali reviviam a paixão de Cristo.
Esperaria pelo fim. Nunca as quatro horas de oração tinham levado tanto a passar.
Queria rezar pela Rainha e pelo Rei, por Portugal, rezar pelos pobres, pelos desvalidos,
pelos doentes, pelos escravos, pelos marinheiros e soldados que dilatavam a fé
de Cristo nas remotas partes do Oriente e do Ocidente; rezar pelo Santo Padre,
o papa Paulo III..., mas qual? Quando fechava os olhos e deixava cair a cabeça
entre as mãos, uma só imagem me aparecia e uma só voz ouvia: a de Luís Vaz.
Violante
Andrade. Évora, 1 de Junho, 1545
Aquelas
rimas desconcertaram-me. Grande graça é saber ler, não só o que elas dizem mas
mormente o que escondem. Li o soneto, recitei-o um ror de vezes, primeiro em
surdina e depois a alta voz. Li-o seguidamente de cima a baixo e de trás para a
frente, e ora só os versos pares, ora só os ímpares. Nada. Conformei-me: não
tinha aquele soneto outro propósito que não o de ser um belo soneto à moda de
Petrarca. Nisto saltaram-me de súbito à vista as primeiras letras de cada
estrofe: lá estava, escondido num acróstico, o que Luís Vaz me intentava dizer:
Vosso como cativo, já que o j, se
lê i e o v se lê u na moderna ortografia. Procurei seguimento e, lendo
depois as primeiras letras da sétima sílaba métrica, encontrei o tesouro: mui
alta senhora. Orgulho-me da minha perspicácia; são também coisas que se
aprendem, mas a queda parar decifrar o enigma, a mensagem de amor dissimulada, ou
se nasce com ela ou ilude-nos para sempre. Há poemas que se viram do avesso
para nos virarem do avesso. É esse o fascínio e o sobressalto!
Vencido está de
Amor, meu pensamento,
o mais que pode
ser vencida a vida,
sujeita, a vos servir instituída,
oferecendo tudo a vosso intento.
Contente deste bem,
louva o momento
ou hora em que se
viu tão bem perdida;
mil vezes desejando,
a tal ferida
outra vez renovar
seu perdimento.
Com essa pretensão
está segura
a causa que me guia
nesta empresa,
tão estranha, tão
doce, honrosa e alta.
Jurando não seguir
outra ventura,
votando só por vós
rara firmeza,
ou ser no vosso amor
achado em falta.
Muito enfadada ando eu com a política
do Reino. Aqui em Évora só aquelas rimas me consolam: Vosso como cativo, mui alta senhora! Vosso como cativo, mui alta senhora!
Mais uma morte recente ensombra o
paço: morre, em Castela, a princesa dona Maria Manuela, a única filha viva dos Reis
de Portugal, ao dar à luz o pequeno Carlos Lourenço de Habsburgo. Ainda assim, não
esmorece o ânimo do senhor meu marido. Francisco Morais, nosso conselheiro, dá-se
a grandes trabalhos para o chamar à razão. A sucessão, senhor. Nada é ainda garantido.
Francisco Morais franzia e desfranzia a testa, o que costumeiramente nada anunciava
de bom». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN
978-989-741-488-6.
Cortesia de OdoLivro/JDACT