quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «Li o soneto, recitei-o um ror de vezes, primeiro em surdina e depois a alta voz. Li-o seguidamente de cima a baixo…»

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Catarina Ataíde. Igreja das Chagas, Sexta-feira Santa, 16 de Março, 1544
«(…) Com tudo aquilo, não prestava grande atenção à cerimónia, que Deus me perdoe. Mal podia esperar pela hora de saída. Estaria Luís Vaz no adro? Não ousei voltar-me nos bancos para o procurar no meio da multidão de fiéis que ali reviviam a paixão de Cristo. Esperaria pelo fim. Nunca as quatro horas de oração tinham levado tanto a passar. Queria rezar pela Rainha e pelo Rei, por Portugal, rezar pelos pobres, pelos desvalidos, pelos doentes, pelos escravos, pelos marinheiros e soldados que dilatavam a fé de Cristo nas remotas partes do Oriente e do Ocidente; rezar pelo Santo Padre, o papa Paulo III..., mas qual? Quando fechava os olhos e deixava cair a cabeça entre as mãos, uma só imagem me aparecia e uma só voz ouvia: a de Luís Vaz.

Violante Andrade. Évora, 1 de Junho, 1545
Aquelas rimas desconcertaram-me. Grande graça é saber ler, não só o que elas dizem mas mormente o que escondem. Li o soneto, recitei-o um ror de vezes, primeiro em surdina e depois a alta voz. Li-o seguidamente de cima a baixo e de trás para a frente, e ora só os versos pares, ora só os ímpares. Nada. Conformei-me: não tinha aquele soneto outro propósito que não o de ser um belo soneto à moda de Petrarca. Nisto saltaram-me de súbito à vista as primeiras letras de cada estrofe: lá estava, escondido num acróstico, o que Luís Vaz me intentava dizer: Vosso como cativo, já que o j, se lê i e o v se lê u na moderna ortografia. Procurei seguimento e, lendo depois as primeiras letras da sétima sílaba métrica, encontrei o tesouro: mui alta senhora. Orgulho-me da minha perspicácia; são também coisas que se aprendem, mas a queda parar decifrar o enigma, a mensagem de amor dissimulada, ou se nasce com ela ou ilude-nos para sempre. Há poemas que se viram do avesso para nos virarem do avesso. É esse o fascínio e o sobressalto!

Vencido está de Amor, meu pensamento,
o mais que pode ser vencida a vida,
sujeita, a vos servir instituída,
oferecendo tudo a vosso intento.

Contente deste bem, louva o momento
ou hora em que se viu tão bem perdida;
mil vezes desejando, a tal ferida
outra vez renovar seu perdimento.

Com essa pretensão está segura
a causa que me guia nesta empresa,
tão estranha, tão doce, honrosa e alta.

Jurando não seguir outra ventura,
votando só por vós rara firmeza,
ou ser no vosso amor achado em falta.

Muito enfadada ando eu com a política do Reino. Aqui em Évora só aquelas rimas me consolam: Vosso como cativo, mui alta senhora! Vosso como cativo, mui alta senhora!
Mais uma morte recente ensombra o paço: morre, em Castela, a princesa dona Maria Manuela, a única filha viva dos Reis de Portugal, ao dar à luz o pequeno Carlos Lourenço de Habsburgo. Ainda assim, não esmorece o ânimo do senhor meu marido. Francisco Morais, nosso conselheiro, dá-se a grandes trabalhos para o chamar à razão. A sucessão, senhor. Nada é ainda garantido. Francisco Morais franzia e desfranzia a testa, o que costumeiramente nada anunciava de bom». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
                                                                                   
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