«O físico prodigioso, primeiro
incluído em Novas andanças do demónio
(1966), é a possibilidade alegórica dessa humana divindade. A
divisão simbólica em doze capítulos (seis de ascensão e seis de queda), a
ficção medieval, a ambiguidade do nome (médico, corpo), o jogo de identidades
entre as personagens (cavaleiro, diabo, Senhora, donzelas, frades), as alusões
a mitos clássicos (Adónis, Bacantes) e ritos tradicionais, as referências
cristológicas e pagãs, os códigos do amor cortês e do amor místico, tudo se
congrega numa sagração do amor e da liberdade, da vida para além da morte, da
redenção da condição humana nas metamorfoses de um corpo glorioso». In
Instituto Camões
Notas
sobre O Físico Prodigioso
«Neste
ensaio Eiras relê o percurso de iniciação a partir de figuras que elege como
fulcrais. Herói ao mesmo tempo fáustico e inseguro, experimental e diabólico, o
físico acaba por descobrir, para lá do apetite pela vida, a aceitação da morte.
Para viver a física, deve recusar a metafísica: ser terra, corpo, desejo e
dissolução. Balanceando
o erecto corpo ao passo do cavalo, vinha descendo a encosta. O sol, muito alto
ainda, iluminava de crepitações o vale que, selvático, se abria ante o seu
olhar que pervagava abstracto, sem distinguir o mato que floria, as pedras que
rebrilhavam pardas e cinzentas, os pequenos animais que esvoaçavam, corriam,
rastejavam, ou se ficavam suspensos, sem temor, fitando a mole imensa e
caminhante de cavalo e cavaleiro. No fundo do vale, por entre os renques de
choupos e salgueiros, entrecortada estava a chapa metálica e estreita de um
rio. Foram para ele descendo, o cavaleiro, na mesma distracção absorta,
sofreando o passo, que se apressava agora, do sedento cavalo, cujas narinas se
dilatavam. O manso ruído de águas entre seixos e o suave dançar das folhas do
arvoredo ao sopro de uma brisa ténue fizeram que o cavaleiro despertasse para o
calor que sentia, o cheiro acre de suor e pó, que dele e do cavalo era mistura,
e um cansaço dos membros e da boca seca. Ele próprio dirigia a descida.
Suspendamos
a leitura, mesmo se este parágrafo continua, ininterrupto, atravessando várias
páginas. O que acontece aqui? Certamente a verticalidade de um corpo sobre a
horizontalidade de uma paisagem. Há uma colina a descer, é certo, oblíqua; mas
o olhar do cavaleiro pervagava abstracto, sem distinguir: como se todas as
diferenças deste mundo natural, ainda não humano, fossem apagadas. Pelo
contrário, o cavaleiro não é indiferente, sobretudo não nos é indiferente, se toda
a narrativa, embora heterodiegética, for orientada pelo seu ponto de vista,
para não dizer ponto de fuga. Como se assim pudéssemos ser também nós,
leitores, desde o primeiro instante, físicos prodigiosos. Por ora, assinale-se
esta verticalidade que desequilibra a paisagem; serão vários os desequilíbrios,
mesmo se (ou porque) o
cavaleiro está bem equilibrado na sua montada. É que este quase-centauro
inaugura um regime de funcionamento da paisagem: o cavaleiro, na mesma
distracção absorta, sofreando o passo, que se apressava agora, do sedento
cavalo, cujas narinas se dilatavam, depois o cheiro acre de suor e pó, que dele
e do cavalo era mistura, finalmente. Ele próprio dirigia a descida. Não será
uma descrição da psique, entre o desejo do id e o domínio do ego? Ou a irrupção de uma linguagem de controlo e
auto-conhecimento, inaudita na natureza, e contudo continuando a natureza? O
físico, porque é dele que se trata, começa por ser aquele que tem poder sobre a
física, isto é, sobre o seu próprio corpo natural ou sobre a natureza tout court. Ou talvez não. Se
esta cartografia vertical do domínio é a tese da primeira página de O Físico Prodigioso, eu
procurarei, aos poucos, os lugares do desdomínio.
Regresso à
horizontalidade, aqui: o sol (…) iluminava de crepitações o vale que,
selvático, se abria ante o seu olhar que pervagava abstracto, sem distinguir o
mato que floria, as pedras que rebrilhavam pardas e cinzentas, os pequenos
animais que esvoaçavam. O que há de estranho nesta frase? Certamente a corrente
de orações relativas, a arrastarem a atenção do leitor de uns elementos para
outros, agora sem centro de referência, numa quase indolente indiferença (a do
próprio físico, a nossa) entre tudo o que existe. A própria frase se faz horizontal.
Tudo nela é preciso (necessário e nítido), mas nada nela é central: o ponto de
fuga transforma-se sem parar. Paisagem indiferente, e já imanente. Mas a
imanência é vista do alto do cavalo (que, pelo contrário, está imerso na sede,
e portanto no desejo); a focalização acaba por retornar ao físico, demasiado
superior. Como escreve Luciana Picchio, há nesta sequência um cavaleiro qui
descend la colline enveloppée de lumière: protagoniste et différent, surhomme,
dès la première ligne. Mas essa super-humanidade, julgo eu, é precisamente o
que ainda o retira à paisagem. O cavaleiro deverá descer à terra.
Por
enquanto, guardemos esta paisagem, ou melhor, este contraste anterior à
paisagem: horizontalidade indiferente de águas, plantas, bichos, verticalidade
de um cavaleiro que acorda para o mundo. Não chega a ser uma imagem, mas é a
promessa de todas as imagens, e também a negação delas, se o cavaleiro descer
do cavalo, se o centauro se desfizer, se o desejo assaltar o super-homem. Contra
as sequências de relativas, surgirão algumas figuras de desordem. Serão de duas
ordens. Por um lado, uma movimentação no espaço horizontal: o cavaleiro
percorre a paisagem. E, onde quer que pise, instaura a verticalidade:
transporta a verticalidade com ele, isto é, a insolência de um olhar sobre. Desequilíbrio do
espaço por irrupção do super-homem. Por outro lado, uma movimentação na própria
verticalidade, que resolverá aquele desequilíbrio. É assim que o cavaleiro
desce da montada, conhece as três donzelas, depois dona Urraca, ganha uma alma;
mas esse percurso de queda continuará ainda, até o cavaleiro morrer e ser
enterrado. Percurso de imanentização, pelo qual o homem abdica da
verticalidade. Assinalemos já, não haverá simples síntese: porque do corpo
irreversivelmente caído se erguerá uma roseira inebriante, gerando novos
físicos. O ciclo recomeçará. Mas acho importante pensar que o físico tem de
perder a verticalidade: é esta paisagem inicial que deve ser desfeita». In Pedro
Eiras, Metamorfoses 9, Rio de
Janeiro / Lisboa, Caminho, Cátedra Jorge de Sena, UFRJ, 2008, p. 37-54, Jorge
de Sena (1959-1965), Edições ASA, colecção Finisterra, 1977, ISBN
978-972-411-437-8.
Cortesia de Metamorfoses/EASA/JDACT