Era
uma vez um menino
«(…) Ninguém responde, são
minutos de um silêncio intranquilo... Ou do cansaço da viagem ou da surpresa
pela ironia, não sabem o que dizer. Talvez contassem que o pequeno Sancho se
limitasse a abanar a cabeça, acatando decisões sem manifestar opinião. Afinal
não passa de um varão ainda na puerícia. Mas o pequeno rei sente-se um
vencedor, fez-lhes saber que está ao corrente de tudo. E afasta-se em direcção
às escadas. Gonçalo Mendes começa a tamborilar com os dedos no tampo da mesa,
de olhos perdidos na janela. As vozes dos outros aumentam de volume, à medida
que disputam entre si o privilégio de maior ascendência sobre o rei. Por si
calavam-no num abrir e fechar de olhos, sem lhe permitir que abrisse a boca,
mas mestre Vicente e o papa, o papa e mestre Vicente..., muito protegem o varão
por causa da pouca idade. Regressaram de Leão para reassumir um lugar de
prestígio na corte, um lugar que o defunto rei negara às famílias que tomaram o
partido das irmãs, e agora o herdeiro, ainda de cueiros, já quer mostrar que
está acima de todos. Gil Vasques Soverosa procura fazer as vezes de fiel da
balança. Está cansado de ouvir falar de Sancho com tão pouco respeito: ele é o
rei, é natural que queira tomar partes nos assuntos da governação. Coloquem-se
no lugar dele e hão-de compreender. Pois não estamos nós a fazê-lo? É um varão
imberbe, nada sabe do mister, como pode enfrentar os tutores com arrogância? Pergunta
Lourenço Viegas Portocarreiro, irritado. Não é ele o culpado, sois vós, a
tratá-lo como se fosse apenas um moço de estrebaria. O momento exige ou não um
auto de investidura? Que auto? Atira Gonçalo Mendes. Põe-se-lhe a coroa na
cabeça, o manto escarlate pelos ombros e a espada na mão direita, pronto. Martim
Anes toma o partido do senhor de Soverosa. Estou do lado de Gil Vasques. Sancho
é uma criança, tem só mais um ano do que o meu filho. Posso entender-lhe a
rebeldia e ao mesmo tempo a vontade de ser respeitado. Deve estar amedrontado,
apazigua João Fernandes Lima, apelar à autoridade é uma forma de mostrar que
está pronto para a governação.
E como diz Gil Vasques, Sancho deve
sentir falta do ritual de reconhecimento da sua condição de rei. Reconhecimento,
João Fernandes? Bem se vê que tendes sido vós, os de Lima, Soverosa e de Riba
de Vizela, os mais favorecidos pela coroa. Traremos ao paço uma manceba
arreitada, e logo veremos se está preparado ou não. É Abril Peres a sugerir que
o rei deve crescer à pressa, despertando gargalhadas na maioria dos outros. A
discussão avançaria pela noite dentro, entre vasos de vinho e nacos de vianda,
se um criado não se chegasse ao pé do chanceler com um pedido: Teresa Martins
pede que não falem tao alto, senhor, ouvem-se as vozes no quarto dos infantes. Gonçalo
Mendes bate as palmas, depois a voz possante de Garcia, senhor do Eixo,
desperta os que dormitam sobre as peles. Concordam que já deviam ter-se
deitado, a jornada foi longa e fastidiosa. O chanceler resume só os pontos
importantes a tratar nos próximos dias, um deles a questão da herança das irmãs
do rei que acaba de morrer. É a prioridade deles, murmura Gil Vasques ao ouvido
do alferes, enquanto Gonçalo revela a urgência de conduzir o rei a Lisboa para
renegociar com o Templo o usufruto e a exploração das terras e castelos deixados
às tias. O alinhamento com o arcebispo de Braga é evidente, sussurra Martim Anes,
em conversa paralela com o senhor de Soverosa. Finalmente Abril Peres avança
para a porta e os outros seguem-no, a cambalear. Gil Vasques e Martim Anes
permanecem, só o tempo de jurar um pacto de defesa dos interesses de Sancho,
como se traçassem uma fronteira que não deixarão ninguém ultrapassar. Bem sabem
que essa linha imaginária corresponde à diferença ideológica entre os homens da
cúria. Longe de se ter desvanecido, a divisão entre famílias que se acentuava
já no reinado anterior, ameaça agora a estabilidade do novo reinado». In Maria Helena
Ventura, Conheces Sancho? Edições Saída de Emergência, 2016, ISBN
978-989-637-951-3.
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