«A montra negra da Livraria Thibault
era a moldura mais respeitada da Rue de Nevers, um beco desconsolado que se escondia
entre as costas de dois quarteirões do Quartier de la Monnaie e que, séculos
antes, servira de escoadouro às imundices das irmãs da Penitência de Jesus
Cristo. A loja situava-se sob o arco que abria para o Quai de Conti e, para entrar
era necessário bater na vitrina. Isto se ele desse pelo sinal, o que não era garantido.
Naquele domingo, o livreiro cego dirigiu-se ao recesso mais escuro da livraria
e sentou-se à escrivaninha. O tampo estava vago, apenas papeis dispersos, uma telefonia
a pilhas e um rosto num passe-partout, o rosto de Fidelia. Estavam juntos havia
quatro anos e ele lembrava-se da apoteose dos primeiros tempos: descontando as raras
e breves ocasiões em que a rapariga visitava a mãe, nunca acordara sozinho.
Como qualquer velho, invejava a imaturidade e embriagava-se com a juventude da amante.
E depois Fidelia lia-lhe a todas as horas do dia. Imprevisíveis, as palavras da
jovem surgiam-lhe de lugares distintos, adocicadas pelo sotaque platense, dando
voz à multidão de livros que o rodeavam desde sempre como um coro de mudos. Na verdade,
sempre escolhera as mulheres pelos olhos que não tinha.
Só
deixava que o aceitassem como amante se lhe prometessem maratonas de leitura.
Nunca se despedira de nenhum com um livro a meio e só por uma vez deixara que o
convencessem na hora de escolher o que ler. Fora Azurine, uma argelina de meia-idade,
cuja paixão obcecada por Zola lhe adiara Lolita pela semana que levara a
terminar Germinal, um ultraje!
Houvera ainda Apolline, Doriane e
Madalena. Apolinne, a primeira, que se punha a arder quando o romance aquecia e
o fizera devolver os Henry Miller que tinha na livraria; Doriane, a actriz que invadia
a imaginação do livreiro, arquejando como Desdémona às mãos de Otelo ou rindo-se
da morte como a Bovary, outro ultraje, os grandes livros dispensam essas coisas,
dissera-lhe ele tantas vezes; e Madalena, filha de um português e de... Apolline,
que, trinta anos depois, aquecia o lugar que fora da mãe, embora com mais equilíbrio
entre as páginas e os lençóis. É claro que a vida dele não fora só romances, também
a abrira a contos lidos numa noite, literatura de cordel que esquecia sem desgosto.
Nunca cuidara das razões daquelas mulheres, porque o procuravam, porque se deixavam
ficar. Talvez preferissem não ser vistas ao acordar, talvez adorassem ouvir-se com
a voz dos livros.
Gostava de França e morreria em Paris.
Resumia a sua vida todos os dias, mas não incluía os anos de juventude nem a tragédia
que o fizera fugir. Preferia lembrar o recomeço, a chegada a Génova, o sopro dos
freios do comboio. Contara cada segundo de silêncio após a abertura das portas e
fora o primeiro a apear-se. O impacto dos sapatos no empedrado soara-lhe como tiros
no cais vazio. Era só mais um judeu a escapar das cinzas. Atrás de si, outros
trezentos de olhos relutantes, uma tapeçaria de caras estendida à porta de cada
vagão. Nesse momento ouvira a campainha e voltara a contar os segundos. Mas nem
então os gritos irromperam, só o som dos que saltavam da carruagem, os passos renitentes,
a roupa a raspar na roupa, as tosses dispersas a lembrar que a carga era humana.
Sentira um encontrão e agarrara a mala azul com mais força. Lá dentro, papéis
escritos que, dobrados, lhe caberiam na algibeira. Mas ele queria uma mala, com
as mãos vazias pareceria um indigente, já bastava sê-lo. Não vira os companheiros
curvados e cinzentos olhando em redor como se esperassem lobos. A chegada dos carabinieri
tivera um efeito caótico, todos se espremeram uns contra os outros. Afinal era só
para os levarem para a sala ao lado, uma espécie de refeitório inventado à pressa
onde as cozinheiras pareciam enfermeiras. O ar devia vir todo das panelas, transpirado
e temperado como sopa quente, e eles na fila a mastigar o cheiro com vergonha da
bondade das mulheres». In João Pinto Coelho, Os Loucos da Rua
Mazur, prémio Leya, Leya SA, 2017, ISBN 978-989-660-457-8.
Cortesia de Leya/JDACT