O
conde de Nigredo
«(…)
Nada tenho a esconder, senhor. Ignazio sopesou as palavras. Perguntai o que
quiserdes e ser-vos-á respondido. Sabei, no entanto, que sou um homem simples,
não possuo talentos particulares. Isso seremos nós a julgá-lo, mestre Ignazio.
Fernando III fechou ligeiramente os olhos, como que para atestar da sinceridade
do interlocutor. Estamos ao corrente dos vossos feitos. Conta-se, entre outras
coisas, que em 1204 chegastes a Constantinopla e vos pusestes ao serviço do
doge de Veneza, apesar de este ter sido excomungado. Sabei que não toleramos
semelhante conduta. Uma família ligada ao nosso nome não deve apoiar os
perseguidores da Santa Sé, mesmo tratando-se de brasonados ou de condottieri,
suspirou. Mas seremos magnânimos. Omitiremos o vosso passado se aceitardes os
nossos pedidos. Porque vos lembrastes de mim? Fernando III fez uma expressão de
aborrecimento. O vosso pai, um homem de rara inteligência, serviu esta família até
à morte, comportando-se sempre de forma irrepreensível. Exigimos de vós a mesma
obediência. Uberto prestava atenção a todas as nuances do discurso, desde o pluralis
maiestatis do monarca ao tom fugidio do pai, e, no entanto, não conseguia
desviar o olhar de uma particularidade bizarra. Fernando segurava na mão uma
estatueta branca representando uma mulher e de vez em quando acariciava-a com
gestos impacientes, quase infantis. Ouvira falar daquele objecto: era a famosa
Madonna de marfim da qual o rei nunca se separava, nem mesmo no campo de
batalha.
Entretanto,
o monarca continuava a falar. Mestre Ignazio, avaliaremos sobretudo a vossa
obediência com base nas tarefas que tereis de desempenhar. Espera-vos uma
importante missão, eis a razão pela qual vos convocámos. O mercador ergueu os
olhos, cruzando o seu olhar com o do rei, procurando antecipadamente o que o
esperava, mas apenas viu dois olhos inexpressivos, brilhantes como porcelana.
Já se encontrara muitas vezes em situações semelhantes. Não era raro ser
requisitadopelas cortes de grandes senhores interessados na recuperação de relíquias
de santos ou de objectos bizarros escondidos em lugares distantes e
inacessíveis. E, no entanto, não imaginava o que o rei lhe quereria pedir. Por
outro lado, o facto de o monarca ter recorrido à palavra obediência aborrecia-o
sobremaneira. Levantai-vos, mestre lgnazio. Um tom de animosidade coloriu as
palavras de Fernando III. Dizei, soubestes de alguma coisa sobre o rapto da
nossa tia, a rainha Branca de Castela?
Ignazio
não soube o que responder. Nos últimos anos, as manobras dos reinos de Castela
e de França eram expressões mais ou menos explícitas da vontade de duas irmãs,
filhas legítimas do defunto rei Afonso VIII de Castela. A primeira, Berenguela,
era a mãe de Fernando, o Santo, e embora não exercesse directamente o poder, havia
inculcado no filho princípios religiosos rígidos que o levaram à expansão do
reino e à cruzada contra os mouros de Espanha. A segunda, Branca, fora dada em
casamento ao rei francês Luís VIII, o Leão, e, tendo enviuvado há pouco,
assumira o controlo de França, dada a idade prematura do delfim. Branca declarara-se
uma rainha de pulso, não só por se manter à frente de uma turba de barões
apostados em servir uma mulher de sangue castelhano, mas ainda por continuar a
promover a cruzada contra a heresia cátara iniciada pelo marido nas terras do Languedoque.
Tal comportamento dera ocasião a muitas inimizades, mas garantira-lhe,
simultaneamente, o apoio da Santa Sé e sobretudo do cardeal Romano Frangipane,
legado pontifício.
Ignazio
pensava que o rapto da rainha Branca se encaixava perfeitamente naquele enredo
político. Mas nada sabia, por isso baixou os olhos e fez um aceno de negação. Lamento,
senhor. Embora mantenha relações com diversos comerciantes e viajantes da
França, não fui informado a esse respeito. Sendo assim, é verdade, a notícia ainda
não se espalhou. Fernando III pousou a estatueta num braço da cadeira e lançou
um olhar para o soldado coberto com o camar, dirigindo-se depois de novo ao
mercador: é necessário agir rapidamente e com a máxima discrição. Temos de ir
em socorro da rainha Branca de Castela? A voz não era a de Ignazio, mas a de
Uberto, incapaz de conter a surpresa. Todos os olhares da sala convergiram para
ele. Uma onda de embaraço atravessou o mercador. Odiava dar espectáculo. Desculpai
a impertinência do meu filho, majestade. Dardejou um olhar severo na direcção
do consternado Uberto, depois fixou o desenho do tapete persa que tinha a seus
pés. Desculpai-o, peço-vos. Não vejo por que motivo _ afirmou o monarca. Ele
tem toda a razão». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução
de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.
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