quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

A Biblioteca Perdida do Alquimista. Marcello Simoni. «Entretanto, o monarca continuava a falar. Mestre Ignazio, avaliaremos sobretudo a vossa obediência com base nas tarefas que tereis de desempenhar»

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O conde de Nigredo
«(…) Nada tenho a esconder, senhor. Ignazio sopesou as palavras. Perguntai o que quiserdes e ser-vos-á respondido. Sabei, no entanto, que sou um homem simples, não possuo talentos particulares. Isso seremos nós a julgá-lo, mestre Ignazio. Fernando III fechou ligeiramente os olhos, como que para atestar da sinceridade do interlocutor. Estamos ao corrente dos vossos feitos. Conta-se, entre outras coisas, que em 1204 chegastes a Constantinopla e vos pusestes ao serviço do doge de Veneza, apesar de este ter sido excomungado. Sabei que não toleramos semelhante conduta. Uma família ligada ao nosso nome não deve apoiar os perseguidores da Santa Sé, mesmo tratando-se de brasonados ou de condottieri, suspirou. Mas seremos magnânimos. Omitiremos o vosso passado se aceitardes os nossos pedidos. Porque vos lembrastes de mim? Fernando III fez uma expressão de aborrecimento. O vosso pai, um homem de rara inteligência, serviu esta família até à morte, comportando-se sempre de forma irrepreensível. Exigimos de vós a mesma obediência. Uberto prestava atenção a todas as nuances do discurso, desde o pluralis maiestatis do monarca ao tom fugidio do pai, e, no entanto, não conseguia desviar o olhar de uma particularidade bizarra. Fernando segurava na mão uma estatueta branca representando uma mulher e de vez em quando acariciava-a com gestos impacientes, quase infantis. Ouvira falar daquele objecto: era a famosa Madonna de marfim da qual o rei nunca se separava, nem mesmo no campo de batalha.
Entretanto, o monarca continuava a falar. Mestre Ignazio, avaliaremos sobretudo a vossa obediência com base nas tarefas que tereis de desempenhar. Espera-vos uma importante missão, eis a razão pela qual vos convocámos. O mercador ergueu os olhos, cruzando o seu olhar com o do rei, procurando antecipadamente o que o esperava, mas apenas viu dois olhos inexpressivos, brilhantes como porcelana. Já se encontrara muitas vezes em situações semelhantes. Não era raro ser requisitadopelas cortes de grandes senhores interessados na recuperação de relíquias de santos ou de objectos bizarros escondidos em lugares distantes e inacessíveis. E, no entanto, não imaginava o que o rei lhe quereria pedir. Por outro lado, o facto de o monarca ter recorrido à palavra obediência aborrecia-o sobremaneira. Levantai-vos, mestre lgnazio. Um tom de animosidade coloriu as palavras de Fernando III. Dizei, soubestes de alguma coisa sobre o rapto da nossa tia, a rainha Branca de Castela?
Ignazio não soube o que responder. Nos últimos anos, as manobras dos reinos de Castela e de França eram expressões mais ou menos explícitas da vontade de duas irmãs, filhas legítimas do defunto rei Afonso VIII de Castela. A primeira, Berenguela, era a mãe de Fernando, o Santo, e embora não exercesse directamente o poder, havia inculcado no filho princípios religiosos rígidos que o levaram à expansão do reino e à cruzada contra os mouros de Espanha. A segunda, Branca, fora dada em casamento ao rei francês Luís VIII, o Leão, e, tendo enviuvado há pouco, assumira o controlo de França, dada a idade prematura do delfim. Branca declarara-se uma rainha de pulso, não só por se manter à frente de uma turba de barões apostados em servir uma mulher de sangue castelhano, mas ainda por continuar a promover a cruzada contra a heresia cátara iniciada pelo marido nas terras do Languedoque. Tal comportamento dera ocasião a muitas inimizades, mas garantira-lhe, simultaneamente, o apoio da Santa Sé e sobretudo do cardeal Romano Frangipane, legado pontifício.
Ignazio pensava que o rapto da rainha Branca se encaixava perfeitamente naquele enredo político. Mas nada sabia, por isso baixou os olhos e fez um aceno de negação. Lamento, senhor. Embora mantenha relações com diversos comerciantes e viajantes da França, não fui informado a esse respeito. Sendo assim, é verdade, a notícia ainda não se espalhou. Fernando III pousou a estatueta num braço da cadeira e lançou um olhar para o soldado coberto com o camar, dirigindo-se depois de novo ao mercador: é necessário agir rapidamente e com a máxima discrição. Temos de ir em socorro da rainha Branca de Castela? A voz não era a de Ignazio, mas a de Uberto, incapaz de conter a surpresa. Todos os olhares da sala convergiram para ele. Uma onda de embaraço atravessou o mercador. Odiava dar espectáculo. Desculpai a impertinência do meu filho, majestade. Dardejou um olhar severo na direcção do consternado Uberto, depois fixou o desenho do tapete persa que tinha a seus pés. Desculpai-o, peço-vos. Não vejo por que motivo _ afirmou o monarca. Ele tem toda a razão». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.

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