«(…) O quarto de Priscila, no
primeiro andar, não se ressentia do frio invernal, tocado pela intempérie, nos
confins da Galécia. Valéria, sabes que trago a protecção da minha querida Ísis.
A velha sorria, aproveitando o ambiente aquecido pelo hipocausto, que se
situava sob o piso térreo. O ar quente que circulava sob os pavimentos do edifício
e pelo interior das paredes transformava o quarto num local aprazível e
acolhedor. Sim, Juno e Ísis haverão de fazer uma bela parelha para vos proteger,
sossegou-a, bem-disposta. Mas precisa de manter-se calma para que tudo corra na
perfeição! No entanto, não era a serenidade que habitava a auréola da
parturiente. A família vivia ainda o luto da sua irmã mais velha, que morrera
precisamente durante os trabalhos de parto, no Verão anterior. Salvara-se, in extremis, o fruto que levava
dentro de si, depois de uma delicada intervenção da parteira que a assistiu.
Chamaram-lhe Felicíssimo, pela fortuna de ter sobrevivido aos augúrios que, à
pressa, se extraíram da leitura das entranhas de animais e dos voos de aves. A
partir de então, muitas foram as noites de Priscila transformadas em vigílias,
e outras tantas aquelas em que acordava subitamente, afogada no próprio suor,
por entre diabólicos pesadelos, que a ameaçavam de dor ou de um precoce
encontro com Caronte.
Como se já não me bastassem os
enjoos, o aumento do peso e as dores, agora estes malditos pesadelos! Ai de
mim!, murmurava a senhora de Villa Aseconia pelos cantos da casa. Era o seu
primeiro parto, e apresentava-se-lhe como o último passo do sempre incerto percurso
da gravidez. Porém, o que a velha Valéria mais temia, apesar do olho sagaz para
todos os pormenores, era a sorte do feto. Este não se gerara num colo de
facilidades, pois a mãe era uma jovem de quadris estreitos. Mas esse era
assunto que guardava para si, e que haveria de levar em conta no momento da
luz. Valéria dormiu ao seu lado. Quando a madrugada trouxe a alva, Priscila
vislumbrara a hora de todas as verdades. Acometeu-se de tremores e temeu um
ataque de pânico. Estava deitada no quarto à chegada das primeiras contrações.
A parteira chamou as servas para a ajudarem. Por Júpiter! Temos de a segurar e
acalmar! Agarra a senhora por esse lado! Ordenou a uma jovem criada, enquanto
indicava a outra que lhe prendesse as pernas.
Ai
que eu morro! Ai que eu morro! Calma, senhora! Vai correr tudo bem! A parteira
procurou sossegar a patroa, mas os medos com a sorte da paridura não lhe fugiam.
Chamou ao lado uma das escravas que a ajudava. Temos de tomar providências! A
hora aproxima-se e ela não pode continuar neste estado! Vai buscar água e
mistura-lhe aquelas ervas que trouxe do bosque, rápido! Os esforços para a
apaziguarem pouco efeito surtiam. Priscila era uma mulher agoniada. Valéria
suspeitava, porém, que o sofrimento era mais de ordem mental que físico. Tu,
amarra este amuleto no topo da cadeira!, ordenou à mais corpulenta das servas, quando,
num gesto rápido, desapertou a corda com um talismã que, como mulher prevenida,
trazia à cintura. Convenceu Priscila a tomar a bebida. A grávida aquietou-se um
pouco. À medida que o tempo passava, as contracções sucediam-se entre espaços
mais curtos, mas mais prolongadas. E, com elas, os temores e ansiedades da
parturiente, que não parava de queixar-se de dores nas costas, na barriga e até
nas pernas. Nada que Valéria desconhecesse, na sua sabedoria doméstica. Vá lá,
lembro-me muito bem do seu nascimento! Também fez a sua mãe sofrer, mas teve um
final feliz!» In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013,
ISBN 978-972-068-096-9.
Cortesia de PEditora/JDACT