«(…) Zubaida agarrou as mãos da moça e pediu aflita: não o podes
fazer. A cruz pertencia à minha família. Só tu deverás usufruir dela. A cruz
está escondida na casa de meu pai. Ele tem o direito de saber o que se passa
dentro das suas quatro paredes. Não, tens que me prometer que... Por favor mãe,
poupa-me a uma coisa dessas! Mas irás pertencer a um cruzado e vós os dois
devereis guardar a cruz. Porque me torturas dessa maneira?, replicou Aischa, de
lágrimas nos olhos. Eu quero casar com Amir, ser uma boa esposa e uma boa mãe
para os filhos dele. Oh sim, e ter que o dividir com outra, duas ou até três
mulheres! Aischa tinha que admitir que essa perspectiva não lhe agradava. No
entanto, teria que se sujeitar a isso, caso o seu futuro marido se resolvesse a
manter mais esposas, pois o Corão permitia a um homem o máximo de quatro. Ripostou: se
tiver que ser... Afinal, a maior parte dos cristãos casados mantém concubinas,
apesar da sua religião os proibir de tal, alguns sem se darem ao trabalho de as
esconder. Zubaida esboçou um sorriso indulgente: independentemente do que
digas, não escaparás ao teu destino. E a cruz... Não! Zubaida apertou as mãos
da filha e até ergueu o tronco. A sua voz tremia devido ao esforço: não
sobreviverei a esta noite. Tens que me prometer que manterás o segredo. Não
posso, replicou a moça, que já soluçava. Por favor! Zubaida tinha também
lágrimas nos olhos. — Pertenceu à minha família, que vi perecer às espadas dos
infiéis, era ainda mais nova do que tu. Peço-te, minha filha! Apesar das mãos
da moribunda tremerem violentamente, não aliviavam a pressão que exerciam nas
de Aischa. Era o último desejo de sua mãe e a jovem teve de ceder: está bem.
Prometo-te minha mãe, fica descansada! Graças a Deus, suspirou Zubaida. Deixou
cair a cabeça em cima da almofada e
fechou os olhos. Não os tornou a abrir nem a proferir palavra, até que uma hora
mais tarde deixou de respirar.
Zubaida
foi a enterrar a 29 de Junho, o sol brilhava radioso no céu azul. A família de
Malik Ibn Danaf dirigiu-se ao almocavar, o cemitério islâmico fora de muros,
que se estendia pela encosta leste da alcáçova. O pai de Amir, como sábio do
Corão e líder religioso, presidiu à cerimónia. Quando já regressavam, ainda
antes de entrarem na cidade, ouviram a voz do muezim que, do alto do minarete,
chamava os crentes à oração. Aischa e os seus acompanhantes olharam-se
perplexos, pois o sol ainda não se punha: era cedo demais para a oração da tarde.
Ao passarem a bâb al-maqbara, porta assim chamada por ser a que se usava para
se deslocarem ao cemitério, ainda se espantaram mais. Gente apressada cruzava
as ruas, até mulheres, que a esta hora adiantada raramente saíam de casa.
Também muitos dos habitantes dos arrabaldes entravam na cidade, como se
procurassem refúgio, fugindo a um perigo extremo. Teria a ver com o malfadado
Ibn Errik, que já há alguns dias devastava a região com os seus homens? Conquistara torres de atalaia e rubut, os
mosteiros-fortalezas, dos quais o mais conhecido era o de Saqabân (actual
Sacavém). Os portugueses tinham-se porém mantido à distância, tanto de Lusbuna,
como de Sintra, pelo que todos haviam acreditado que estivessem prestes a
retirar, satisfeitos com os despojos. Malik Ibn Danaf avistou um conhecido e
perguntou-lhe: o que se passa? Alá o Altíssimo nos guarde!, retorquiu o homem. Foi
avistada uma enorme armada de majus, esses pagãos vindos dos confins do norte.
Mais de uma centena de naus prepara-se para entrar no Wâdi Tâjuh! (o rio Tejo) O
coração de Aischa começou a martelar. Teria a alma de sua mãe, cujo corpo
tinham acabado de enterrar, alguma coisa a ver com isto? O rei português,
acrescentou o homem, foi ao encontro deles. Al-Attar o nosso alcaide vai agora
dirigir-se aos fiéis na mesquita aljama. Também o mercador e a sua família se
dirigiram à maior mesquita de Lusbuna.
As
mulheres, separadas dos homens, ajoelharam-se em cima dos tapetes, viradas para
o mihrab, o sinal na parede da mesquita que indicava a direcção das preces: o
leste, onde se situava a cidade de Meca. O alcaide dirigiu-se ao mindbar, o
púlpito ao lado do mihrab, onde ao meio-dia das sextas-feiras os líderes
religiosos pregavam aos crentes, e anunciou: ainda não sabemos quantos majus
vieram. Os nossos vigias contaram entre 150 a 200 naus, serão por isso mais de
dez mil homens. O exército de Ibn Errik, Alá o maldiga, é o maior que ele
alguma vez reuniu, já que recebeu reforços do norte do seu reino. Depois da
conquista de Shantarin, os seus comandantes apelaram novamente às armas e
conseguiram entusiasmar muitos, pois certamente já sabiam que esses cruzados
vinham a caminho. Nada mais nos resta do que nos barricarmos na nossa cidade.
Mas não desesperemos! Tentaremos recuperar as reservas alimentares guardadas na
matmurâ situada fora de muros, antes que os cristãos montem cerco. E rezemos
para que, mesmo depois de sitiados, tenhamos acesso aos al-hurí cavados no
flanco da encosta da al-qasbâ. Não esqueçamos ainda que a maior parte dos
habitantes dos arrabaldes procurou refúgio dentro da cidade, assim como aldeões
das redondezas, e muitos deles trouxeram animais de criação consigo. Tenhamos
fé! Não há força senão em Alá, o Alto, o Magnífico! Se for Sua vontade que
resistamos aos invasores, salvando a nossa cidade, assim acontecerá! Arrasada
pelos acontecimentos, Aischa só tinha uma certeza: a vida, como ela até àquele
momento a conhecera, desaparecera. Como se a sua mãe, ao morrer, a tivesse
levado consigo». In Cristina Torrão, A Cruz de
Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT