«Na opinião de Maria Alzira Seixo
há pelo menos quatro razões para reler Novas
Cartas Portuguesas. Uma delas, talvez a mais importante, é o confronto dos
tempos que permite verificar como a situação para a qual o livro apelava (a
situação social da mulher) não foi passível de qualquer alteração significativa.
Com efeito, apesar de ter havido alguns progressos na condição feminina em Portugal
depois de 1974, as desigualdades mantêm-se e o poder patriarcal parece não ter
sofrido grandes mudanças. A publicação em Abril de 1972, em plena primavera
marcelista, de Novas Cartas
Portuguesas, livro assinado por três escritoras já conhecidas no espaço
literário português, funcionou como um acto político de alto valor simbólico
que provocou uma reacção feroz por parte da censura fascista: acusadas de
pornografia e ultraje à moral pública, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta
e Maria Velho da Costa viram o seu livro retirado do mercado e descobriram-se a
braços com um processo judicial a que só a pressão dos movimentos feministas internacionais
e sobretudo a Revolução dos Cravos permitiram pôr termo. A mais de 30 anos de
distância, e mesmo se hoje os códigos morais e as mentalidades portuguesas já não
se escandalizam com o livro das três
Marias, parece-nos interessante interrogar o discurso de insurreição desta
obra que, a nosso ver, ainda não perdeu de todo a actualidade, mesmo se a sua
reedição em 1998 passou quase despercebida. Ao mergulhar no livro, o que o leitor
descobre antes de mais é uma escrita ousada, por vezes agressiva, despudorada,
formando um vasto panorama sobre o estatuto das mulheres no imenso cortejo do
seu infortúnio histórico. Deparamos assim com figuras femininas marcadas por
condicionalismos de vária ordem, maltratadas, enclausuradas, casadas à força,
enganadas, exploradas e, apesar de tudo, extremamente pacientes. Mariana
Alcoforado, a célebre religiosa de Beja, que serve de ponto de partida ao discurso
entrecruzado e indissociável das três escritoras, funciona como o símbolo de
todas as mulheres, como o arquétipo da alienação e da clausura feminina no seio
da sociedade patriarcal, pois: que mulher não é freira, oferecida, abnegada,
sem vida sua, afastada do mundo? Qual a mudança, na vida das mulheres, ao longo
dos séculos? No tempo de tia Mariana as mulheres bordavam ou teciam ou fiavam
ou cozinhavam, sujeitavam-se aos direitos de seus maridos, engravidavam, tinham
abortos ou faziam-nos (...) O que mudou na vida das mulheres? Já não tecem, já
não fiam, talvez porque se desenvolveram a indústria e o comércio; as mulheres
bordam, cozinham, sujeitam-se aos direitos de seus maridos, engravidam, têm
abortos ou fazem-nos, têm filhos, nados-mortos, nados-vivos, tratam dos filhos,
morrem de parto, às vezes, em suas casas, onde apenas mudou o feitio dos móveis,
das cadeiras e dos cortinados. Neste círculo infernal, o destino das mulheres
repete-se de geração em geração, legitimado pela cultura e pela tradição, uma
vez que desde o princípio dos tempos: tiveram os homens de se julgar semideuses
caídos de sua graça por obra da mulher; e logo depois tiveram que se inventar
redimidos através do ventre de nova mãe, essa santa, essa capaz de conhecer
Deus no seu ventre e de no seu ventre encarnar o deus salvador, depois chamado
o filho do homem, que ironia rebuscada, na sua vida e nos seus actos exemplares.
O estatuto da mulher no pensamento patriarcal foi sempre definido pela
marginalização, pela estigmatização e pela domesticação. Dependentes e
submissas, vítimas do amor ou da paixão, as mulheres foram durante séculos o verdadeiro
Outro do homem, o continente negro que Freud assumia como inacessível. Num
contexto cultural marcadamente falogocêntrico, como diria Derrida, a escrita constitui
para elas uma forma de afirmação identitária. Durante muito tempo, a
epistolografia, género considerado menor, conotado com o feminino, revelou-se
um fértil espaço de interrogação e de reflexão. Também o convento funcionou
paradoxalmente como espaço de libertação, constituindo uma forma de escapar ao
casamento imposto pela família. As cinco cartas atribuídas a Mariana
Alcoforado, publicadas em Paris no século XVII, com o título Lettres de la Religieuse Portugaise,
contavam a paixão infeliz da freira abandonada por um oficial francês, o conde
de Chamilly, e conheceram a partir de 1669 um êxito enorme que inspirou muitas
continuações, respostas e imitações. Depois de várias polémicas, é hoje aceite
como seguro que o autor destas Cartas
foi Guilleragues, bom conhecedor da alma feminina e da história de Mariana
Alcoforado que viveu, de facto, no convento de Beja. Ao traduzir as cartas da freira
para alemão, em 1907, Rilke salientou a sua originalidade, considerando-as como
as mais belas cartas de amor da literatura ocidental. Em Novas Cartas Portuguesas as três Marias mobilizam justamente este texto, sem nunca evocarem Guilleragues,
e inventam várias gerações de Marianas vítimas da opressão patriarcal, da
violência social, da injustiça e da discriminação, como a Mariana filósofa que vê
desmoronar-se todos os seus esforços literários, a mulher solteira e
desprezada, que trabalha para ganhar um salário de miséria, ou ainda a mulher
transformada em objecto de consumo, vítima do seu destino biológico. Através de
uma rede intertextual, híbrida e fragmentada, as três autoras revelam a encruzilhada
onde se encontra a mulher, em processo de tomada de consciência, ou seja, de desclausura.
Desta forma, o livro afirma-se como um palimpsesto, na medida em que a sua
superfície esconde níveis de significação mais profundos, equacionando
modernidade e tradição. Com efeito, ao estabelecer relações com as famosas Cartas de Mariana
Alcoforado, o texto moderno propõe uma palavra circular onde se conjugam dois tempos
(passado-presente), dois espaços (interior-exterior) e dois universos (real-imaginário),
solicitando frequentemente a dinamização de discursos oriundos da oralidade, da
tradição lírica, de obras anteriores das autoras, de passagens de um texto de
Albertine Sarrazin ou ainda, entre muitas outras possibilidades, a transcrição de
um artigo do Código Penal português». In
Maria Graciete Besse, As Novas Cartas Portuguesas e a Contestação do Poder
Patriarcal, Wikipedia, revista Latitudes nº 26, 2006.
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