Violante
Andrade. Évora, 1 de Junho, 1545
«(…) Lérias, lérias, o príncipe João
Manuel está vivo e de saúde! Crescei e multiplicai-vos, ordens do Criador e
preceito que todo o honrem, príncipe ou plebeu, cumpre de bom grado. Que esse
seja o último dos nossos cuidados. Atendamos ao principal, o Norte de África, e
não nos deixemos confundir por misteres de alcova. Há que largar as praças,
senhor conde de Linhares, nada mais há a fazer. Abandonar o Norte de África?
Onde andas com a cabeça, Francisco Morais? Avançam os mouros por aí acima em menos
de nada! As nossas praças em África são um freio à investida do grão-turco, não
as podemos largar, nem hoje nem nunca. Mas, senhor conde de que outra forma conseguiremos
ajustar as contas do Reino? O senhor meu marido levou o copo à boca e
demorou-se a saborear mais um golo do vinho alentejano. Depois, pousou o copo e
prosseguiu: ora, Francisco, João III procede por vezes como um vulgar mercador,
e o Reino não é uma chafarica da Rua Nova! Com franqueza! Temos o ouro do
Brasil, ouro sem fim! Temos escravos até fartar, especiarias, porcelanas,
tapeçarias, tecidos e riquezas, que mais nos falta? E a fortuna que Carlos V
nos fez pagar pelas ilhas Molucas, senhor conde? Chega para isso e para muito
mais! Somos donos do mundo, c'os diabos! Pensa alto, pensa grande. De gente
mesquinha está o Reino cheio. Temos educação, temos quatro tipografias! Temos
mestres estrangeiros em Coimbra, temos cientistas e matemáticos, temos
navegadores que até a volta ao mundo deram. Não tens ouvido o que Pedro Nunes
diz? Que o astrolábio, a bússola e o quadrante nos hão-de levar a novos céus, a
novos mares. Muito mundo há ainda por navegar!
E quem nos governará? Se todos os
infantes nos morrem… Quem irá segurar o trono? Que pergunta tola, Francisco Morais,
já te disse. há-de ser um filho do infante João Manuel!
Vi Francisco Morais abanar a
cabeça e passar as mãos pelas têmporas, alongando-se num interminável lamento.
Em nada lhe aprazia contrariar o seu senhor mas, em verdade, a desarmonia entre
o derrotismo de um e o ânimo exaltado do outro acompanhava os seus muitos e longos
colóquios. Raramente acertavam passo. Credo! A desdita não há-de ser tanta...,
e agora, meu caro amigo, há que acreditar na Insulíndia e nos novos tesouros
que de lá nos chegarão! Tesouros, são as Molucas algum tesouro, senhor conde?
Perdoai-me a insistência, mas não estou em crer que... Insulíndia, Japão...
Apanho palavras no ar para logo as deixar cair. O senhor meu marido era um
sonhador e eu mal sabia pronunciar aqueles nomes com sabor a cravo e a seda. O
eterno desaguisado sobre as Molucas causava-me um tédio sem nome… E logo quando
eu me achava particularmente radiosa, qual mui alta senhora de fogoso, ainda
que por ora esquivo, trovador cativo. Os brincos de duas laçadas de pérolas
sobressaíam-me do pescoço esguio, pois que trazia o cabelo apanhado numa coifa
de veludo, toda ela ornamentada com um cordão de pérolas. A veste que trajava, verde-hortelã,
era bonita e clássica, bem ajustada nas costas, fazendo realçar a cintura. Apesar
da minha fresca prenhez, mantinha-me firme e jamais me sentira tão cheia de
mim.
Radiosa, sim, mas também algo
amofinada. Não com os trabalhos de João III, ou com os rumores que chegavam de
Trento de que o papa convocara um Concílio, inquieto com as ideias de Erasmo de
Roterdão, tentando a custo congregar e reunir todos os cristãos; não com o
triste abandono de Safim e Azamor no Norte de África; não porque se achasse a
praça de Diu cercada pelos otomanos; enfadava-me mormente a conversa em torno
da ilhas de Maluco e do incerto hemisfério que ora as atribuía aos portugueses
ora aos espanhóis. Agastava-me sobremaneira ouvir o senhor meu marido e
Francisco Morais discutirem sobre a desavença entre João III e Carlos V acerca
das ilhas de Maluco, das especiarias de Maluco, do cravo valioso de Maluco, da
fortuna de 350 mil ducados que João III gastara para se casar com dona Catarina
e comprar as ilhas a Carlos V. Malvadas ilhas de Maluco que malucos a todos, e mormente
a mim, nos deixavam». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do
Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
Cortesia de
OdoLivro/JDACT