Expansão
Portuguesa. Oriente
«(…)
O acervo documental aqui elencado procede do fundo da Nunciatura Apostólica em
Portugal, que se acha hoje no Arquivo Secreto Vaticano. Torná-lo acessível,
através de indicações sumárias que remetam o investigador
para novos endereços, é empresa da maior estima e momento para a historiografia
portuguesa. Um dos mais promissores desses endereços seria talvez a história da
resistência social indígena à redefinição da jurisdição eclesiástica nos
territórios do Padroado. Consta destes volumes uma rica documentação nesse
sentido, não só no âmbito diplomático, mas também na correspondência privada
dos missionários e na vida social anónima. Esta é indagável, não só na
sobredita correspondência, como nos pedidos de privilégios, de dispensas, de
breves, de absolvição de censuras e, posto que onde menos se esperaria, em
perto de uma centena de processos de inquirição sobre idoneidade ao episcopado.
Além das peças documentais de menor valor informativo nesse sentido, como
certidões de estudos e de ordens sacras, eles reúnem preciosos depoimentos
acerca do candidato e da Sede a prover (quando não da Sede de origem do
candidato, em tratando-se de transferência). Há porém, sobretudo no primeiro
volume do acervo, um timbre mais altissonante em função do qual nos propomos
estruturar a presente contextualização, a saber, o da missionação em contexto persecutório.
Trata-se ainda, em todo o caso, de um conflito de jurisdições ou, para ir mais
longe, um conflito entre sentimentos de pertença que a modernidade foi agudizando
até às guerras do século XX. Vejamos como.
Subjaz
ao próprio nome, e, a fortiori, à autorrepresentação, da Modernidade um
programa de reposição das coordenadas filosóficas, sociais e políticas da
Antiguidade. Daí a concepção moderna do passado mais próximo (um milénio
inteiro, afinal) como uma era insignificante, designada em função de ambas: a
idade do meio. Não cabe aqui a análise de tantas rupturas que esse espírito
dito renascentista viria realmente a significar para o Ocidente. À
contextualização em objecto, interessa sobretudo a consideração da vertente
política e a ela prevalentemente nos referiremos. Ora, nesse aspecto, avulta à
partida um traço macroscópico. A pertença do homem antigo à sua Cidade é total
e exaustiva. O seu horizonte existencial e religioso, delineado por um mercado
de satisfações imanentes, entre mistagogias e cultos oficiais, não se alarga
além da dimensão cívica. Melhor: tende a restringir-se a essa dimensão. É por
isso que o ordenamento jurídico romano não titubeia no reconhecimento do
tradicional direito de optio divinitatis mas não pode abdicar do
disposto em matéria cultual pela autoridade pública competente. De facto, até
os irredutíveis judeus, corifeus do Deus único e transcendente, enquanto
aguardavam a realização das suas promessas messiânicas, lá se iam encaixando
nessa equívoca liberdade de culto. Mas, para isso, tinham que comprar,
literalmente, através de um tributo, a isenção do culto público que a
consciência lhes vedava. Tratando-se, para mais, de um número de isentos,
praticamente contido em nítidos limites étnicos e confinado por um voluntário
isolamento social, essa compra satisfazia a pretensão absolutista da Cidade antiga
e sossegava, senão os povos, ao menos as autoridades. Autorizado pelo jus
civile, também o Deus transcendente e revelado a Israel se tornava de algum
modo um deus da Cidade, e o seu culto era por isso um culto lícito (religio
licita).
O
sistema funcionou até aparecerem na cena cívica os seguidores (a secta)
de um Ressuscitado que inaugurara um novo Eon. Como os judeus, também
eles pretendiam adorar o Deus transcendente, fora do mundo, portanto, e
exterior à Cidade. Mas, à diferença deles, e com a agravante de ignorarem
qualquer tranquilizadora barreira étnica e social, não podiam comprar algo que
já era seu, pois as promessas messiânicas estavam cumpridas. Eram algo presente
e real, e não futuro, desde que Cristo ressuscitara na carne inaugurando assim
o eon ou saeculum definitivo. Para essa gente que vivia do lado
de cá do fim do mundo (hujus saeculi), o horizonte absoluto da Cidade
antiga ficava radicalmente relativizado. Cristo, o Primogénito de muitos (no
dizer de Paulo) tornara-os Cidadãos de outra Cidade, o Céu. E, doravante, qualquer
cidade mundana teria que se medir com o destino eterno do homem. Até ao ano
311, pairará sobre eles um interdito de Nero (non licet esse christianos),
que os condenou por ateus». In José Eduardo Franco (Coordenação Geral)
Arquivo Secreto do Vaticano,Archivio della Nunziatura in Lisbona, Centro de
Estudos Damião de Góis, Projecto financiado pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, 2010, POCI 2010, Esfera do Caos Editores, Lisboa, 2011, ISBN
978-989-680-032-1.
Cortesia de
EsferadoCaos/JDACT