«(…)
Por vezes, penso que a esperança não pertence unicamente a cada um, que existe
como um éter que se infiltra dentro de nós no momento do nascimento.
Ultimamente, cheguei mesmo à conclusão improvável de que a natureza nos concede
mãos e pés, olhos e ouvidos, para que possamos trabalhar como servos leais
desta ilimitada neblina de esperança, realizando, quando somos capazes, a
alquimia delicada de a transformar em realidade tangível - dando-lhe forma e
importância, por assim dizer. Por isso, quando me vi livre do aperto de mestre
Tiago, servi a esperança tão bem quanto o meu jovem coração sabia e disparei
pela rua acima, cheio de uma alegria selvagem, sem prestar atenção às ordens
gritadas atrás de mim, desejando apenas tornar-me amigo do rapaz rebelde que me
ajudara. Apanhei Daniel fora das portas da cidade. Para que é que me estás a
seguir, carago?, gritou-me. Sem saber o que dizer, arrastei-me tristemente
atrás dele. Finalmente, num tom estridente, disse que queria agradecer-lhe por
me ter libertado de Tiago, o construtor de telhados. És uma toupeirinha
esquisita, disse ele. Não, não sou, repliquei eu, magoado, porque ainda não
sabia que ele tinha razão. Num tom de voz monótono, cantarolou: Esquisito e
pequenito, corajoso e faladoso... Era uma rima para me descrever, tinha a
certeza, e a última palavra, faladoso, era claramente uma invenção dele.
Naquele
momento, comecei a acreditar que ele era capaz de ser esperto. Dirigiu-me um
sorriso matreiro e deitou-me a língua de fora. Faltava-lhe um dos caninos, o que
lhe dava um ar um bocado cómico. Naquela altura, eu não conhecia nada de
Shakespeare, mas agora posso facilmente imaginar que Puck foi escrito a pensar
num actor com o temperamento de Daniel. Depois falou-me do pai pescador, que
estava na Terra Nova. O rapaz ia juntar-se-lhe dali a dois anos, quando fizesse
catorze anos. Disse-me que a mãe era costureira numa modista na Rua dos
Ingleses, uma das nossas ruas mais elegantes. Ela faz coisas para todas as
esposas dos comerciantes mais ricos, vangloriou-se ele. Apercebendo-se da minha
suspeita de que isto era um exagero, dado o estado da sua roupa, acrescentou
com grande confiança: uma vez, a minha mãe fez um vestido para a rainha dona
Maria. Comprido e cor de púrpura, com rendas por toda a parte. Nunca se viu
tanto tecido. Mer…, até se podiam vestir
duas ou três vacas com ele. Eu teria gostado de saber mais sobre as semelhanças
entre vestir a rainha dona Maria e uma pequena manada de gado, mas ele adiou as
minhas perguntas ao apontar para a sua casa logo ali à frente, uma choça
coberta de musgo, numa rua estreita e escura ao pé do rio. Um emaranhado de
madressilva serpenteava pela fachada acima e amontoava-se no cimo do telhado e
as abelhas zumbiam pelo meio das flores perfumadas. Daniel tirou uma chave da
algibeira. Entrámos numa divisão minúscula, que não era maior do que cinco
passos de um homem de um lado ao outro. O tecto vergava ao meio e estava
coberto de um bolor preto e penugento que deitava um cheiro rançoso. Tive medo
de ser soterrado vivo, mas ele empurrou-me para dentro. Um tapete com motivos
florais desbotados estendia-se em cima do chão de tijolos rachados até à
chaminé na parede do fundo. Na água de uma escudela de madeira colocada à
frente dela, flutuavam umas folhas de couve castanhas e desfeitas. Um crucifixo
de granito por cima da lareira despertou-me a atenção. O rosto do Salvador
tinha sido pintado por cima com uma variedade de cores horríveis. Nunca
perguntei a Daniel quem tinha feito aquilo, mas, agora, creio que ele era o
culpado mais provável.
Nós
não tínhamos nem cruz nem rosário em nossa casa, pois o meu pai rejeitava todo
e qualquer objecto do Cristianismo por os considerar símbolos de superstição. Levantando
as sobrancelhas maldosamente, Daniel levou-me para uma divisão ligeiramente
maior, onde uma janela aberta na parede do fundo deixava passar uma luz
sombria. Havia dois colchões grosseiros colocados um em cada um dos cantos
exteriores. Daniel saltitou, com pequenos saltos hábeis pelo meio da porcaria
espalhada pelo chão, e conseguiu chegar a uma arca feita de tábuas. Abrindo-a,
tirou para fora uma máscara de madeira, toscamente esculpida, com um focinho
bulboso e buracos no lugar dos olhos». In Richard Zimler, Meia-noite ou O Princípio
do Mundo, 2003, Porto Editora, 2017, ISBN 978-972-004-727-4.
Cortesia
de PEditora/JDACT