«(…) País menstruado, diz antes. Feito do
sangue e dos humores das mulheres, que atordoam e excitam os homens. Isto dizia
Leonor, que mantém comigo uma conversa ininterrupta. Era lúcida, a Leonor. Sonhadora e lúcida, uma combinação invulgar. Não
se prestava à redução ao interdito que é tão fácil neste país. Não tinha
vergonha do que sabia, nem medo, por muito tumultuoso que fosse esse saber.
Haveria de se rir com a esperteza neoliberal dos revolucionários de ontem,
vestida com togas gregas de costureiros da Roma pós-moderna. É também por isso
que preciso destes amigos. Como uma espécie de conspiração contra o
individualismo imperial, que brada aos valores com o único fito de valorizar os
interesses económicos dos seus pregoeiros. Essa pregação esbarra na couraça da
nossa inteligência gregária, que se contenta em existir sem o exibicionismo de cabaret das letras em que se transformaram todas
as discussões do nosso tempo. Às vezes vem mais alguém, um extra variável
seleccionado entre os nossos conhecidos. Podemos olhar nos olhos uns dos outros
sem experimentar o cansaço que nos provocam os olhares convencionais: o olhar
das mulheres, turvo de expectativas de mudança; o olhar dos
colegas de serviço, carregado de jogos de poder; o olhar avaliador dos
recém-conhecidos; o olhar ausente do comum dos mortais, obcecado com a
velocidade da sua própria corrida. Nós olhamo-nos como se nos víssemos ao espelho. Ritual espontâneo de
reconhecimento. Olhamo-nos com a alegria de estarmos vivos e inteiros. A
calvície que avança, o vinco que se acentua entre as sobrancelhas, a barriga
que cresce e amolece. Envelhecemos juntos, barafustando e rindo à volta de uma
mesa. Não esperamos nada de especial de cada um de nós. Não há decepções
nascidas de ilusões desproporcionadas. Não há ilusões. Nem sombra dessa maçada
incomensurável que se chama análise da relação. Não existe a contabilidade do
deve e do haver em que as mulheres são educadas. Dar para receber. Dar
racionadamente. Sofrer quando a ração recebida é menor do que a ração dada. Que
vida triste, a dessa metade da humanidade educada assim. Sempre à procura da
culpa. Detectives em défice permanente. Eu não sofro por amor, parece-me um
paradoxo. Deixei-me disso depois da bendita traição de Elisa. O amor é um
estímulo para a imaginação, uma droga sem efeitos secundários. Não é por não
ser correspondido que deixa de me dar alento. Pelo contrário: a nega aumenta a
tusa. A dificuldade atiça o engenho. O amor é um sucedâneo da arte. Ou a
própria arte, agora que tudo é sucedâneo. Freud argumentaria que esta forma de
pensar é própria de um narcísico que nunca foi capaz de ultrapassar a fase
primária. Talvez Freud tivesse sido mais feliz se experimentasse as virtudes do narcisismo, em vez de se
fixar nos mistérios da infância, que é apenas a época mais chata da vida. As
crianças que o digam.
Um oncologista está protegido pelo
fantasma da própria doença; é muito difícil acusá-lo de negligência médica.
Mesmo que ela exista. Matei três pessoas por negligência. Uma delas a minha
própria mulher. Das três vezes, a minha negligência foi baptizada como excesso
de empenhamento. Uma aposta radical: ou extirpava o sacana do tumor e o doente
ressuscitava para uma vida nova, ou o doente finava-se. Nesses três casos, os
doentes foram-se. Um deles era a Leonor. Sem essa operação, teria vivido mais
um ano. Um ano de miséria, ela própria o sabia. Mas a nossa filha teria tido
tempo de se adaptar ao desaparecimento da mãe. Teria dez anos, em vez de nove.
E talvez ainda hoje estivesse viva, faria agora vinte e cinco anos, a Mariana.
Caiu de uma ribanceira, na Escócia, nove meses depois da morte da mãe. Aconselharam-me
a inscrever a miúda num curso de Verão, bem longe, com muito ar puro e muito
divertimento, para que ela esquecesse e ganhasse apetite. Mariana não queria,
mas os avós e os meus colegas achavam que era o melhor para ela. E eu deixei-me
ir na conversa. Soube-me bem. Queria um tempo só para mim». In Inês Pedrosa, Os Íntimos, Publicações dom Quixote,
2010, ISBN 978-972-204-047-1.
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