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Isabel, se Deus o protege, então, como pode estar em perigo? Isabel olhou para
baixo, para a irmã mais nova. Deus não facilita o caminho daqueles que ama,
disse num murmúrio seco. Envia-lhes provações para os pôr à prova. Aqueles a
quem Deus mais ama, são os que mais sofrem. Eu sei. Eu, que perdi o único homem
que alguma vez amarei. Tu sabes. Pensa em Job, Catarina. Então, como poderemos
vencer?, perguntou a rapariguinha. Se Deus ama a Madre, não vai enviar-lhe as
piores provações? E se for assim, como é que alguma vez vamos vencer? Silêncio,
pediu a mãe. Vejam. Vejam e rezem com fé. O seu pequeno exército e o grupo
atacante dos mouros estavam frente a frente, prontos para a batalha. Então.
Yarfe avançou no seu grande cavalo negro. Algo de cor branca oscilava junto ao
chão, preso à cauda negra brilhante do cavalo. Ouviu-se um grito sufocado,
enquanto os soldados na fileira da frente reconheciam o que transportava. Era o
cartaz, com a Avé-Maria que Hernán fixara com um punhal no chão da mesquita. O
mouro amarrara-o à cauda do cavalo, como um insulto calculado, e fazia andar a
criatura enorme para a frente e para trás, diante das fileiras de cristãos,
sorrindo ao ouvir os seus gritos de raiva. Herege, sussurrou a rainha Isabel. Um
homem amaldiçoado com o Interno. Que Deus o fira de morte e castigue
o seu pecado.
O defensor da rainha. De la Vega,
voltou o cavalo e
cavalgou na direcção da pequena casa onde os guardas reais rodeavam o pátio a
minúscula oliveira e a porta da entrada. Parou o cavalo ao lado da oliveira e
retirou o elmo, olhando para cima, para a sua rainha e princesas, que estavam no
terraço. O seu cabelo escuro estava encaracolado e suado devido ao calor, os
olhos escuros faiscavam de raiva. Vossa Alteza, tenho a vossa permissão para
responder a este desafio? Sim, respondeu a rainha, nunca hesitando. Ide com
Deus, Garallosco de la Vega. Aquele homem enorme vai matá-lo, afirmou Catarina,
puxando a manga comprida da mãe. Dizei-lhe que não pode ir. Yarfe é muito
maior. Vai matar De la Vega! Será feita a vontade de Deus, manteve Isabel,
fechando os olhos em oração. Mãe! Vossa Majestade! Ele é um gigante. Vai matar
o nosso defensor. A mãe abriu os olhos azuis e olhou para baixo, para a filha,
vendo que o seu rosto estava vermelho de aflição e os olhos cheios de lágrimas.
Será feita a vontade de Deus, repetiu
firmemente. Tens de ter fé de que estás a cumprir a vontade de Deus. Por vezes,
não compreenderás, por vezes duvidarás, mas se estiveres a cumprir a vontade de
Deus, ele não te enganará, nem tu te podes enganar. Lembra-te disso, Catarina.
Se ganhamos este desafio ou se o perdemos, é indiferente. Somos soldados de
Cristo. És um soldado de Cristo. Não importa se sobrevivemos ou se morremos.
Morreremos pela fé, isso é tudo o que importa. Esta é a batalha de Deus. Ele
enviar-nos-á uma vitória, se não for hoje, será amanhã. E seja quem for a
vencer hoje, não duvidamos de que Deus vencerá e de que venceremos no final. Mas
De la Vega... Catarina protestou, com o seu grosso lábio inferior a tremer. Talvez
Deus o leve para junto de Si, esta tarde, respondeu a mãe decididamente. Devíamos
rezar por ele. Joana fez uma cara na direcção da irmã mais nova, mas quando a
mãe se ajoelhou de novo, as duas meninas deram as mãos para se confortarem.
Isabel ajoelhou-se ao seu lado, com Maria junto de si. Todas olhavam de
soslaio, por entre as pálpebras cerradas, para a planície onde o cavalo baio de
batalha de De la Vega se afastava da linha dos espanhóis, e o cavalo negro do mouro
trotava orgulhosamente diante dos sarracenos». In Philippa Gregory, Catarina de
Aragão, A Princesa Determinada, Livraria Civilização Editora, 2006, ISBN
978-972-262-455-8.
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