Cortesia
de wikipedia
«(…) A pluralidade das vozes
narrativas desenvolve pacientemente a teia de diversos percursos femininos,
enraizados na relação problemática de Mariana Alcoforado e Chamilly. Ao longo
da obra, a temática amorosa nunca ganha uma dimensão eufórica, já que a paixão
se relaciona, desde as suas raízes etimológicas, com uma ideia de sofrimento.
Contudo, é a partir dela que se elabora a visão de um espaço feminino cuja
passividade é neutralizada pela intensidade da escrita, pela variedade das
missivas onde o cruzamento das vozes de mulheres
de palavra pesada, impõe uma constante afirmação de identidade. Desta forma, a
paixão de Mariana Alcoforado pelo oficial francês ultrapassa os limites da história
individual para se transformar em pretexto de análise aplicável a qualquer
situação amorosa e sobretudo em exercício que interroga incansavelmente o
estatuto das mulheres através dos tempos, num espaço tradicionalmente fechado. O
discurso sobre o amor parece constituir, desde sempre, o tema preferido da
escrita produzida por mulheres. Mas, como afirma Béatrice Slama, tal facto tem
raízes históricas, pois: si les femmes, dans leurs textes, parlent tant d’amour,
c’est peutêtre aussi parce que c’est le seul discours qui leur soit concédé. Outra
constante da escrita feminina relaciona-se com a forma epistolar. Composta
quase sempre por mulheres e dirigida essencialmente a um público feminino, como
observa Laurent Versini, esta forma literária permite facilmente opor dois
mundos: o convento e a sociedade, o espaço feminino e o universo masculino, a
clausura e a aspiração de liberdade. Em Novas
Cartas Portuguesas encontramos um conjunto de cartas cuidadosamente
datadas (indo de 1 de Março de 1971 a 25 de Novembro de 1971, ou seja,
produzidas simbolicamente durante nove meses), que passam em revista os grandes
mitos da tradição misógina. Estas cartas podem reunir-se em três grupos: as que
são escritas pelas três autoras, as que são atribuídas a Mariana Alcoforado e
às suas relações (Chamilly, Joana Vasconcelos, etc.) e as que são assumidas por
personagens contemporâneas e muitas vezes anónimas. Assim se constitui um jogo
de espelhos, de ambiguidades, de intercâmbios que permitem pensar de outra forma
a história do poder, da propriedade e da dominação masculina. Por todo este
discurso perpassa naturalmente uma ideia de fatalismo, relacionado com o
conceito de destino ou de natureza feminina, mas a essa visão tradicional
sobrepõem-se estruturas vivas, aprisionadas nos limites histórico-culturais que
se confundem com a cena de uma História marcada pela misoginia. Nesta
perspectiva, apesar de recorrer a uma série de elementos tradicionais, como a
temática amorosa ou a forma epistolar, a obra impõe-se como um texto
subversivo, na medida em que acaba por denunciar especularmente o peso dessa tradição.
A dimensão mais evidente da subversão relaciona-se com a forma como as autoras
falam abertamente de temas desde sempre ocultados, como o corpo e o desejo físico,
a sexualidade, o prazer feminino, o fingimento enquanto forma de alimentar as
ilusões masculinas, de que é exemplo a seguinte passagem: a camisa de noite
levantada às virilhas assim expostas e o ar composto de quem cumpre um dever
vindo, herdado de nossas mães e avós, o
prazer (não muito, claro) fingido, imitado bem, a fim de se lhes dar a constante
certeza da sua vigorosa virilidade, aura: bons na cama e no trabalho,
excelentes pais de família e patrões de mulher, com ordenado certo ao fim do
mês a fim de se poder comer e ter carro».
In Maria Graciete Besse, As Novas Cartas
Portuguesas e a Contestação do Poder Patriarcal, Wikipedia, revista Latitudes
nº 26, 2006.
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