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Pouco interessado pela exposição de Fust, François deixa que o seu olhar erre
pelas fileiras de volumes que cobrem as paredes. Num recanto escuro, a luz
vacilante de uma vela faz cintilar a lombada de uma encadernação armoriada. O
brasão, impresso a ouro fino, é facilmente reconhecível. Trata-se de um dos
mais célebres da cristandade: o emblema dos Médicis de Florença. Curiosamente,
as armas fulgurantes aparecem privadas da sua divisa. Em seu lugar, rodeia o escudo
um entrelaçado de motivos de um dourado mais mate, que nada têm de italiano nem
de heráldico. François estuda com uma atenção intensa os contornos sinuosos dos
motivos entrelaçados, e pensa de súbito descobrir neles caracteres semitas. É frequente
que se utilizam temas hebraicos e arabescos a fim de conferir uma conotação bíblica
ou oriental aos livros sagrados. Nas cenas da vida de Cristo esparzem-se, aqui
e ali, letras judaicas, e o mesmo se passa com os retratos de Satanás. Mas,
aqui, a amálgama de signos de nobreza e de entrelaçamentos à maneira israelita
parece documentar uma singular união, uma espécie de pacto. Os dois símbolos, o
italiano e o judeu, entrecruzam-se firmemente, até formarem um só. Dando-se
conta do assombro de Villon, Petrus Schoeffer levanta-se bruscamente. Planta-se
de pé diante de François, e depois, virando-lhe as costas, aplica-se na
execução de uma tarefa demorada. Quando torna a sentar-se, o livro desapareceu,
escondido no meio dos outros. Os volumes que se repartiam ao acaso, por aqui e
ali, mostram-se agora alinhados em fileiras cerradas. E a pequena vela está
apagada.
O
bispo impacienta-se. Um vulgar processo de fabrico não basta. A coroa espera de
Fust muito mais do que a gerência de uma oficina de impressão. O alemão não foi
escolhido pela sua destreza no manejo dos tinteiros, mas porque, ao contrário
dos seus confrades, tem em primeira mão textos inéditos que poderiam dar a
Paris uma cabeça de avanço sobre as outras capitais. É pela qualidade das obras
aqui publicadas, na rua Saint-Jacques, que Luís XI entende assegurar o
esplendor de França. O patrocínio das artes é o índice mais seguro da
prosperidade de um monarca. E a expressão manifesta do seu poderio. Tal é pelo
menos o que dá a crer Chartier, evitando de facto revelar o propósito
verdadeiro de toda esta iniciativa. Nem uma palavra disse a esse respeito a Villon,
que se surpreende com este súbito fascínio do rei pelas coisas do espírito. Os
motivos reais do soberano são bem mais terra-a-terra. Trata-se de uma simples
questão de finanças. Presentemente, tudo o que chega de Bizâncio, de Alexandria
ou do Levante passa pelo vale do Ródano. A suserania papal sobre Avinhão e o
condado venaissino frustram, por conseguinte, o rei dos enormes proventos
resultantes dos direitos de passagem e da taxação dos géneros alimentares. É o legado
pontifício que os cobra, fazendo assim com que encham os cofres de Roma, em vez
dos de Luís XI. O rei quer forçar o Vaticano a ceder-lhe essa fonte de
receitas. Acontece que os escritos editados por Fust indispõem ao extremo Roma.
Minam a hegemonia da Igreja sobre as almas.
O
plano do jovem soberano é simples. Depois de permitir que Fust inunde o país de
textos que pervertem os crentes, Luís XI, erigindo-se em protector da fé, comprometer-se-á
a afastar o perigo. Mas para conter tão funesta vaga de publicações, ser-lhe-á
indispensável obter o controlo dos postos de guarda provençais. Trata-se de uma
chantagem que só poderá ser bem-sucedida na condição de a Santa Sé se sentir
seriamente ameaçada, por obras cujo alcance inegável sejam capazes de tomar de
assalto os fundamentos do dogma. E cabe a Fust fornecer as munições
necessárias. Ora, o impressor limita-se a gabar os méritos das suas máquinas. E
nada mais. Fechando o punho sobre o cabo do báculo, Chartier franze o sobrolho.
Fustiga François com o olhar. Villon sente simultaneamente um aperto na
garganta, precisamente nessa região do pescoço que a corda laça. Embora espie o
alemão desde há vários meses, Colin ainda não logrou descobrir onde obtém Fust
as obras das quais a coroa tem tanta necessidade para alcançar os seus fins.
Chartier está no seu direito de pedir contas. O acordo celebrado com Fust
estipula claramente que a atribuição das patentes e privilégios à sua oficina
de impressão tem por contrapartida a publicação dos escritos raros, e de monta,
aos quais ele tão misteriosamente tem acesso.
Pesa
agora na atmosfera da sala um silêncio frágil. Fust sabe muito bem o que o
bispo dele espera, mas tem de seguir as suas instruções à letra. Os seus
superiores não o autorizaram a levar as negociações mais longe. Embora uma
possível aliança com o rei de França constitua uma ocasião afortunada e
imprevista, mostram-se reticentes. Não querem deitar a perder anos de
preparativos. O velho impressor faz nervosamente girar no dedo o seu anel. O
dragão dourado mergulha por baixo do dedo, dando caça ao rubi não facetado, a
seguir ressurge, com as garras cravadas no fulgor vermelho da pedra, como se lhe
sugassem o sangue. Dei parte das vossas exigências a quem de direito. Os meus comanditários
sentem-se honrados pelo interesse que neles pondes. E um pouco intimidados...» In
Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira,
Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.
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