terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Meia-noite ou O Princípio do Mundo. Richard Zimler. «Ela estava ferida, gritei eu, e tinha o olho quase fechado. Estava grande e inchado. Não viram? Foi uma maldade fazer-lhe isso»

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«(…) Tinha-lhe arrancado os olhos!, declarou outro. Os homens alardearam a sua coragem dizendo o que teriam feito ao brutamontes se eles tivessem chegado a tempo. As mulheres escarneceram da pouca utilidade de qualquer um deles em alturas em que eram realmente precisos. Ai de mim! Nada disto servia para ajudar quer a tia Beatriz quer Daniel, que olhavam um para o outro como se fossem as duas únicas pessoas na rua. Ela estava a ser levada a coxear para casa, claramente mais preocupada com o rapaz do que consigo mesma. Isto impressionou-me e interroguei-me há quanto tempo eles se conheceriam. Os homens começaram a exigir que Daniel saísse do bairro. Vais acabar por ser chicoteado se não te puseres a andar daqui para fora antes de eu contar até cinco!, gritou Tiago, o pedreiro. Não pertences aqui, rapaz! Isto pareceu-me muito injusto. Com nove anos de idade, eu não sabia que Daniel podia estar a correr um perigo sério. Naqueles tempos, até um rapazinho podia ficar com a cabeça empalada num poste de madeira de carvalho se o maldito cocheiro morresse e se o testemunho da tia Beatriz não fosse suficiente para justificar o acto dele. Eu também não sabia que um conde, cujos calções de damasco azul não tinham sido lavados, esfregados, engomados e perfumados a tempo, cujo gibão de brocado manchado de vinho ainda estava pendurado como um morcego encharcado pela chuva numa corda no quintal das traseiras da tia Beatriz, tinha o direito de mandar o cocheiro bater na lavadeira faltosa até a deixar quase sem sentidos. Qualquer pessoa que não estivesse satisfeita com este tipo de justiça podia enviar o seu protesto escrito ao bispo, à nossa louca rainha Maria ou até mesmo ao papa Pio VII, que, ainda que se compadecesse, estaria demasiado ocupado a evitar ser capturado por Napoleão para abrir quaisquer communiqués do estrangeiro. Em resumo, uma pessoa podia mandar uma carta a quem muito bem entendesse, porque não teria o menor efeito.
Não, eu não sabia estas coisas e, por isso, quando vi o pedreiro Tiago confrontar Daniel, fiquei indignado. O garoto olhava para os pés, confuso. Tal como eu, tinha estado à espera de elogios. Meu Deus, eu só queria ajudar, acabou por dizer. Tive de o fazer. Caso contrário, ela estaria mais morta que um tambor. O Daniel tapou os olhos com a mão, não querendo chorar à frente dos homens, depois esfregou as têmporas com os polegares, como se quisesse banir pensamentos indesejados, era um gesto de angústia que eu viria a conhecer muito bem nos anos seguintes. Com uma maturidade que achei extraordinária, disse então: acho que me vou embora. Bom dia a todos. Antes de se afastar, foi buscar a pedra. Deixa ficar isso, rapaz, aconselhou Tiago, esticando o dedo num aviso. Já causaste estragos suficientes por um dia. Mesmo assim, Daniel agarrou na pedra, dando origem a mais censuras da parte de Tiago e dos outros. O que deu mais força à minha solidariedade para com ele naquele momento foi o couro cabeludo rapado, numa clara tentativa de lhe libertar a cabeça de piolhos. O corte de cabelo era infeliz, pois fazia-o parecer doente e pobre, levando estes homens a agirem mais duramente do que seria justificado. Se ele tivesse canudos louros a caírem-lhe na gola vermelha de um casaco de seda caro, o caso podia ter acabado com palmadinhas nas costas. Corri para eles. Mestre Tiago, gritei. Mestre Tiago, a tia Beatriz estava a ser espancada. O malvado estava a dar-lhe pontapés! John, vai já para casa, disse ele, franzindo as sobrancelhas, desagradado.
Ela estava ferida, gritei eu, e tinha o olho quase fechado. Estava grande e inchado. Não viram? Foi uma maldade fazer-lhe isso. O homem, era..., era um bloody poltroon. Disse as últimas palavras em inglês; era o termo do meu pai para um miserável cobarde e não consegui lembrar-me de nada em português que se lhe comparasse. Sentindo pelo olhar de mestre Tiago que ele não me compreendera, tentei freneticamente encontrar uma tradução correcta. Mas ele tinha outros planos e agarrou-me pelo braço. Anda, filho, vou levar-te à tua mãe, disse ele, os olhos a cintilarem de rectidão. Se não me largar...!, gritei-lhe. O que é que acontece?, perguntou ele, rindo. Pensei em dar-lhe um pontapé no sítio em que o tecido das calças puídas se espetava sugestivamente para a frente, mas percebi que isso ainda me meteria em mais sarilhos. Faça troça de mim, se lhe apetecer, declarei, a tremer, tentando imitar a voz do meu pai, mas se não deixar este rapaz em paz...
Pequeno como era, não conseguia encontrar uma conclusão apropriada para aquele prometedor começo de ameaça. E ainda não tinha conseguido libertar o braço da mão peluda de mestre Tiago. Contudo, Daniel tornou desnecessário o remate à minha frase ameaçadora. Tomando balanço, atirou a pedra à cara tirânica de mestre Tiago, mas a meia velocidade, por assim dizer, o que lhe deu tempo para se desviar. O pedreiro atirou-se ao chão, desistindo de me manter agarrado. Mexe-te!, gritou-me Daniel, abanando furiosamente os braços. Mexe o rabo e corre, estás livre!» In Richard Zimler, Meia-noite ou O Princípio do Mundo, 2003, Porto Editora, 2017, ISBN 978-972-004-727-4.

Cortesia de PEditora/JDACT