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Tinha-lhe arrancado os olhos!, declarou outro. Os homens alardearam a sua
coragem dizendo o que teriam feito ao brutamontes se eles tivessem chegado a
tempo. As mulheres escarneceram da pouca utilidade de qualquer um deles em
alturas em que eram realmente precisos. Ai de mim! Nada disto servia para
ajudar quer a tia Beatriz quer Daniel, que olhavam um para o outro como se fossem
as duas únicas pessoas na rua. Ela estava a ser levada a coxear para casa,
claramente mais preocupada com o rapaz do que consigo mesma. Isto
impressionou-me e interroguei-me há quanto tempo eles se conheceriam. Os homens
começaram a exigir que Daniel saísse do bairro. Vais acabar por ser chicoteado
se não te puseres a andar daqui para fora antes de eu contar até cinco!, gritou
Tiago, o pedreiro. Não pertences aqui, rapaz! Isto pareceu-me muito injusto.
Com nove anos de idade, eu não sabia que Daniel podia estar a correr um perigo
sério. Naqueles tempos, até um rapazinho podia ficar com a cabeça empalada num
poste de madeira de carvalho se o maldito cocheiro morresse e se o testemunho
da tia Beatriz não fosse suficiente para justificar o acto dele. Eu também não
sabia que um conde, cujos calções de damasco azul não tinham sido lavados,
esfregados, engomados e perfumados a tempo, cujo gibão de brocado manchado de
vinho ainda estava pendurado como um morcego encharcado pela chuva numa corda
no quintal das traseiras da tia Beatriz, tinha o direito de mandar o cocheiro bater
na lavadeira faltosa até a deixar quase sem sentidos. Qualquer pessoa que não
estivesse satisfeita com este tipo de justiça podia enviar o seu protesto
escrito ao bispo, à nossa louca rainha Maria ou até mesmo ao papa Pio VII, que,
ainda que se compadecesse, estaria demasiado ocupado a evitar ser capturado por
Napoleão para abrir quaisquer communiqués do estrangeiro. Em resumo, uma
pessoa podia mandar uma carta a quem muito bem entendesse, porque não teria o
menor efeito.
Não,
eu não sabia estas coisas e, por isso, quando vi o pedreiro Tiago confrontar
Daniel, fiquei indignado. O garoto olhava para os pés, confuso. Tal como eu,
tinha estado à espera de elogios. Meu Deus, eu só queria ajudar, acabou por
dizer. Tive de o fazer. Caso contrário, ela estaria mais morta que um tambor. O
Daniel tapou os olhos com a mão, não querendo chorar à frente dos homens,
depois esfregou as têmporas com os polegares, como se quisesse banir
pensamentos indesejados, era um gesto de angústia que eu viria a conhecer muito
bem nos anos seguintes. Com uma maturidade que achei extraordinária, disse
então: acho que me vou embora. Bom dia a todos. Antes de se afastar, foi buscar
a pedra. Deixa ficar isso, rapaz, aconselhou Tiago, esticando o dedo num aviso.
Já causaste estragos suficientes por um dia. Mesmo assim, Daniel agarrou na
pedra, dando origem a mais censuras da parte de Tiago e dos outros. O que deu
mais força à minha solidariedade para com ele naquele momento foi o couro
cabeludo rapado, numa clara tentativa de lhe libertar a cabeça de piolhos. O
corte de cabelo era infeliz, pois fazia-o parecer doente e pobre, levando estes
homens a agirem mais duramente do que seria justificado. Se ele tivesse canudos
louros a caírem-lhe na gola vermelha de um casaco de seda caro, o caso podia
ter acabado com palmadinhas nas costas. Corri para eles. Mestre Tiago, gritei.
Mestre Tiago, a tia Beatriz estava a ser espancada. O malvado estava a dar-lhe
pontapés! John, vai já para casa, disse ele, franzindo as sobrancelhas,
desagradado.
Ela
estava ferida, gritei eu, e tinha o olho quase fechado. Estava grande e
inchado. Não viram? Foi uma maldade fazer-lhe isso. O homem, era..., era um bloody
poltroon. Disse as últimas palavras em inglês; era o termo do meu pai para
um miserável cobarde e não consegui lembrar-me de nada em português que se lhe
comparasse. Sentindo pelo olhar de mestre Tiago que ele não me compreendera,
tentei freneticamente encontrar uma tradução correcta. Mas ele tinha outros
planos e agarrou-me pelo braço. Anda, filho, vou levar-te à tua mãe, disse ele,
os olhos a cintilarem de rectidão. Se não me largar...!, gritei-lhe. O que é
que acontece?, perguntou ele, rindo. Pensei em dar-lhe um pontapé no sítio em
que o tecido das calças puídas se espetava sugestivamente para a frente, mas
percebi que isso ainda me meteria em mais sarilhos. Faça troça de mim, se lhe
apetecer, declarei, a tremer, tentando imitar a voz do meu pai, mas se não
deixar este rapaz em paz...
Pequeno
como era, não conseguia encontrar uma conclusão apropriada para aquele
prometedor começo de ameaça. E ainda não tinha conseguido libertar o braço da
mão peluda de mestre Tiago. Contudo, Daniel tornou desnecessário o remate à
minha frase ameaçadora. Tomando balanço, atirou a pedra à cara tirânica de mestre
Tiago, mas a meia velocidade, por assim dizer, o que lhe deu tempo para se
desviar. O pedreiro atirou-se ao chão, desistindo de me manter agarrado. Mexe-te!,
gritou-me Daniel, abanando furiosamente os braços. Mexe o rabo e corre, estás
livre!» In Richard Zimler, Meia-noite ou O Princípio do Mundo, 2003, Porto
Editora, 2017, ISBN 978-972-004-727-4.
Cortesia de PEditora/JDACT