«(…) Dado que é suposto eu ser
demasiado delicado para os acompanhar, disse Neville, dado cansar-me e adoecer
com facilidade, servir-me-ei desta hora de solidão, desta fuga às conversas, para
vaguear pelas matas junto à casa e recuperar, se conseguir (indo para isso
colocar-me no mesmo ponto), aquilo que senti ontem à noite, quando a cozinheira
andava atarefada em volta dos fogões, e, através da porta entreaberta, ouvi a história
do homem morto. Encontraram-no com a garganta cortada. As folhas da macieira
colaram-se ao céu; a lua brilhou; fui incapaz de levantar os pés e subir os
degraus. Encontraram-no na valeta. O sangue gorgolejou pela valeta. O rosto era
tão branco como um bacalhau morto. Chamarei para sempre a esta rigidez, a esta
fixidez, a morte entre as macieiras. Viam-se nuvens de um cinzento-pálido a
flutuar; e aquela árvore inexorável; aquela árvore implacável com a sua casca
prateada. O ondular da minha vida não tinha qualquer validade. Fui incapaz de
passar. Havia um obstáculo. Não sou capaz de ultrapassar este obstáculo
impiedoso, disse. E os outros passaram. Porém, todos estamos condenados pelas
macieiras, por aquela árvore impiedosa que não conseguimos passar. Agora, já
não há imobilidade ou rigidez; e eu vou continuar o meu passeio pelas matas em
torno da casa, ao entardecer, ao pôr do Sol, quando este faz aparecer alguns
pontos oleaginosos no linóleo, e os raios de luz se reflectem na parede,
fazendo com que as pernas das cadeiras pareçam estar partidas. Quando chegamos
do passeio, disse Susan, vi a Florrie no jardim em frente à cozinha. Estivera a
lavar, e apertava a roupa contra ela: os pijamas, as camisas de dormir, as
ceroulas. E o Ernest beijou-a. Ele tinha vestido o avental de baeta verde, estava
a limpar as pratas; a boca parecia uma bolsa amachucada, e ele puxou-a, ficando
os pijamas comprimidos contra os corpos de ambos. Ele estava cego como um
touro, e a angústia fê-la desfalecer. O rosto pálido cobriu-se-lhe de veias
vermelhas. Agora, e muito embora fossem pratos de pão com manteiga e copos de leite
à hora do chá, vejo uma fenda na terra, e nos ares elevam-se colunas de vapor
quente; a chaleira ruge da mesma maneira que o Ernest rugiu, e, muito embora os
meus dentes se enterrem no pão com manteiga e vá bebendo o leite adocicado,
sinto-me tão apertada como aqueles pijamas. Não tenho medo do calor, nem mesmo
do gelo do Inverno. A Rhoda sonha, chupando uma côdea de pão embebida em leite;
com um olhar vítreo, o Louis fita a parede em frente; o Bernard esfarela o pão
até o transformar em migalhas, às quais chama pessoas. O Neville, com aqueles
modos arruinados e definitivos, já acabou. Enrolou o guardanapo e enfiou-o na
argola de prata. A Jinny faz girar os dedos na toalha, tal como se estivessem a
dançar ao pôr do Sol, a fazer piruetas. Mas eu não tenho medo nem do calor do
Sol nem do gelo do Inverno.
Agora, disse Louis, todos nos
levantamos; todos nos pomos de pé. A miss Curry abre o livro negro no harmónio.
É difícil não chorar quando cantamos, quando pedimos a Deus que nos proteja
durante o sono, chamando-nos criancinhas a nós mesmos. Quando estamos tristes e
a tremer de apreensão, é bom cantarmos juntos e apoiarmo-nos uns aos outros, eu
contra a Susan e a Susan contra o Bernard, de mãos dadas, com medo de muitas
coisas, eu, da minha pronúncia, a Rhoda, das contas; contudo, cheios de vontade
de vencer. Subimos as escadas como se fôssemos póneis, disse Bernard, a bater
os pés, aos pulos, uns atrás dos outros, prontos a entrar na casa de banho.
Lutamos, brigamos, saltamos para cima e para baixo nas camas duras e brancas.
Chegou a minha vez. Entro». In Virgínia Woolf, 1931, colecção Mil
Folhas, Relógio d’ Água, 2002, 2015, ISBN 978-989-641-526-6.
Cortesia de Relógiod’Água/JDACT