O
contrato da carne
«(…) Tenório surgiu à porta,
trazendo papéis nas mãos. Ele já foi? Sim. Ouvistes a conversa? Ouvi, dona
Mariana. Meu pai sonhava um dia voltar a ficar rico, disse Mariana. Para
comprar um navio e morrer no mar. Por isso foi para as Minas. E, em parte, parece
que saiu-se vitorioso. Ele, que sempre fracassou em tudo. Tenório estendeu o maço
de papéis, segurando-os com as suas mãos marcadas de veias. Tinha o ar derrotado.
Terminei o trabalho, dona Mariana. Não são boas as notícias… Estou com pouco
lucro? Pior. Quase sem dinheiro. Custa-me a crer nas notícias que me dais. Pois
devíeis pedir a vosso primo que examine esses papéis com cuidado. Está tudo aí.
Mariana passou as folhas uma após outra, cheias de números cuidadosamente
alinhados em colunas. Não conseguia deter-se em nenhum detalhe, as garatujas
giravam confusas diante de seus olhos. Odiou-se por não saber números, nem
letras. Não é possível. Ainda tenho escravos, casas, cavalos... Tenório ajeitou
o laço do pescoço. Disse que o Rio de Janeiro estava-se tornando um monte de
notáveis destroços. As capitanias arruinavam-se, as cidades dos litorais
serviam apenas de pousada, os portos se enchiam de estrangeiros que tratavam
logo de seguir para o sertão bravo. Não é possível... Não é possível...
Os trabalhadores, os negociantes,
todos estavam passando às Minas. Até os holandeses dos engenhos. Os plantadores
de cana, os de fumo, os que produziam géneros naturais afligiam-se com a falta
de força de braços. Vossos feitores, tratadores, mecânicos foram embora, disse Tenório.
Queriam receber como califas. Nas Minas costumam pagar muito bem pelos
trabalhos. Agora só há ânimo para o ouro. Não creio que estejais de olhos bem
abertos. O que Mariana via, pela janela, eram novas construções e novos armamentos,
a cidade crescendo para os lados do Boqueirão. Da gente que desembarcava, nem
todos iam para as Minas, mas, ao contrário, ficavam, encantados com a pura
claridade do ar do Rio de Janeiro, com a beleza das colinas, dos edifícios. Os
nobres andavam com brocados de ouro e prata guarnecidos de fitas e franjas, as
casas enchiam-se de sumptuosos móveis holandeses. Dizia-se que a última frota partira
do Rio de Janeiro com duzentas arrobas de ouro. Além do que levaram escondido
nas cavernas, disse Mariana. Tenório ouvia, sem muita coragem de contestar a sua
senhora. Até as negras adornam os cabelos com ouro!, continuou Mariana. O bispo
mandara uma carta ao rei reclamando da sumptuosidade dos enfeites que as
escravas usavam para despertar lascívia nos homens. E as carruagens novas que
passam nas ruas? E as frotas de comércio que aportam e despejam caixas e mais
caixas de mercadorias? Isso significa dinheiro, todos estão prosperando, é o
que se comenta na cidade.
Estão
cegos, senhora, deliram. Se para alguns as coisas aparentam prosperidade,
deve-se olhar atrás dos morros, nos recôncavos. Ide aos campos, ide ao Engenho
d'Água, ide à Gamboa e tereis um retrato do que realmente ocorre. Esse era o
equívoco dos ricos, pensou Tenório. Ficavam em suas casas, apáticos,
indolentes, enquanto os amanuenses, as criadas, os cocheiros, os escravos
andavam pelas ruas buscando suprir as necessidades dos senhores, resolvendo os seus
problemas, fazendo as suas compras, os seus pagamentos, atracando-se na feira,
aspirando o fedor dos becos e assistindo à calamidade com os próprios olhos.
Começavam a faltar mercadorias. A cada dia tinha-se que pagar mais caro por géneros
de menor qualidade. Muitos comerciantes não aceitavam senão ouro como pagamento».
In
Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991,
ISBN 978-857-164-190-7.
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