terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Meia-noite ou O Princípio do Mundo. Richard Zimler. «Depois falou-me do pai pescador, que estava na Terra Nova. O rapaz ia juntar-se-lhe dali a dois anos, quando fizesse catorze anos»

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«(…) Por vezes, penso que a esperança não pertence unicamente a cada um, que existe como um éter que se infiltra dentro de nós no momento do nascimento. Ultimamente, cheguei mesmo à conclusão improvável de que a natureza nos concede mãos e pés, olhos e ouvidos, para que possamos trabalhar como servos leais desta ilimitada neblina de esperança, realizando, quando somos capazes, a alquimia delicada de a transformar em realidade tangível - dando-lhe forma e importância, por assim dizer. Por isso, quando me vi livre do aperto de mestre Tiago, servi a esperança tão bem quanto o meu jovem coração sabia e disparei pela rua acima, cheio de uma alegria selvagem, sem prestar atenção às ordens gritadas atrás de mim, desejando apenas tornar-me amigo do rapaz rebelde que me ajudara. Apanhei Daniel fora das portas da cidade. Para que é que me estás a seguir, carago?, gritou-me. Sem saber o que dizer, arrastei-me tristemente atrás dele. Finalmente, num tom estridente, disse que queria agradecer-lhe por me ter libertado de Tiago, o construtor de telhados. És uma toupeirinha esquisita, disse ele. Não, não sou, repliquei eu, magoado, porque ainda não sabia que ele tinha razão. Num tom de voz monótono, cantarolou: Esquisito e pequenito, corajoso e faladoso... Era uma rima para me descrever, tinha a certeza, e a última palavra, faladoso, era claramente uma invenção dele.
Naquele momento, comecei a acreditar que ele era capaz de ser esperto. Dirigiu-me um sorriso matreiro e deitou-me a língua de fora. Faltava-lhe um dos caninos, o que lhe dava um ar um bocado cómico. Naquela altura, eu não conhecia nada de Shakespeare, mas agora posso facilmente imaginar que Puck foi escrito a pensar num actor com o temperamento de Daniel. Depois falou-me do pai pescador, que estava na Terra Nova. O rapaz ia juntar-se-lhe dali a dois anos, quando fizesse catorze anos. Disse-me que a mãe era costureira numa modista na Rua dos Ingleses, uma das nossas ruas mais elegantes. Ela faz coisas para todas as esposas dos comerciantes mais ricos, vangloriou-se ele. Apercebendo-se da minha suspeita de que isto era um exagero, dado o estado da sua roupa, acrescentou com grande confiança: uma vez, a minha mãe fez um vestido para a rainha dona Maria. Comprido e cor de púrpura, com rendas por toda a parte. Nunca se viu tanto tecido. Mer…, até se  podiam vestir duas ou três vacas com ele. Eu teria gostado de saber mais sobre as semelhanças entre vestir a rainha dona Maria e uma pequena manada de gado, mas ele adiou as minhas perguntas ao apontar para a sua casa logo ali à frente, uma choça coberta de musgo, numa rua estreita e escura ao pé do rio. Um emaranhado de madressilva serpenteava pela fachada acima e amontoava-se no cimo do telhado e as abelhas zumbiam pelo meio das flores perfumadas. Daniel tirou uma chave da algibeira. Entrámos numa divisão minúscula, que não era maior do que cinco passos de um homem de um lado ao outro. O tecto vergava ao meio e estava coberto de um bolor preto e penugento que deitava um cheiro rançoso. Tive medo de ser soterrado vivo, mas ele empurrou-me para dentro. Um tapete com motivos florais desbotados estendia-se em cima do chão de tijolos rachados até à chaminé na parede do fundo. Na água de uma escudela de madeira colocada à frente dela, flutuavam umas folhas de couve castanhas e desfeitas. Um crucifixo de granito por cima da lareira despertou-me a atenção. O rosto do Salvador tinha sido pintado por cima com uma variedade de cores horríveis. Nunca perguntei a Daniel quem tinha feito aquilo, mas, agora, creio que ele era o culpado mais provável.
Nós não tínhamos nem cruz nem rosário em nossa casa, pois o meu pai rejeitava todo e qualquer objecto do Cristianismo por os considerar símbolos de superstição. Levantando as sobrancelhas maldosamente, Daniel levou-me para uma divisão ligeiramente maior, onde uma janela aberta na parede do fundo deixava passar uma luz sombria. Havia dois colchões grosseiros colocados um em cada um dos cantos exteriores. Daniel saltitou, com pequenos saltos hábeis pelo meio da porcaria espalhada pelo chão, e conseguiu chegar a uma arca feita de tábuas. Abrindo-a, tirou para fora uma máscara de madeira, toscamente esculpida, com um focinho bulboso e buracos no lugar dos olhos». In Richard Zimler, Meia-noite ou O Princípio do Mundo, 2003, Porto Editora, 2017, ISBN 978-972-004-727-4.

Cortesia de PEditora/JDACT