«(…) E depois tinha ficado de boca aberta à espera que ela
pusesse lá a fatia do bolo. Duas palavras bastaram para disparar nela esse
passatempo terrível. Teresa fazia de qualquer obstáculo um pretexto para o
mistério, uma ponte de glória para a solidão. Apaixonara-se já por quase todos
os rapazes do grupo, um a um e para a eternidade. Estavam muito encostados uns
aos outros, magicando em alternativas confortáveis ao gelo da tarde, quando se
ouviu aquele ruído seco, e depois o grito da senhora que vinha do café. Foi no
dia seguinte, no funeral de Mariana, que Cláudia se tornou outra. Dinis parou
junto dela em frente da campa aberta e ela quase desmaiou. Era um odor de terra
húmida e de sal e de chuva e de rosas queimadas em álcool. Pareceu-lhe que era
a morte, aquilo que assim a entontecia. Nem sequer lhe viu o rosto. A morte é a
única testemunha da paixão. Tem ciúmes dos corpos e queima-os devagar. Quando
os corpos se entregam ao império dos seus lumes é a morte que os ilumina.
Depois rouba-os, como se perpetrasse um crime perfeito, esquecendo-se de que os
corpos deixam traços. Escusado será dizer que nenhum destes pensamentos turvou,
por um momento que fosse, a cabeça de Cláudia. Mais tarde houve quem comentasse
que lhe faltava naquela época idade e experiência. A própria Cláudia gosta de
repetir que nessa altura era demasiado
jovem e irreflectida, como se a vida nos concedesse um prémio de serenidade em
troca dos nossos perdidos quinze anos. O que faltou a Cláudia naquele instante
parado no tempo foi o que sempre lhe faltaria: esse elementar instinto de
defesa que disfarçamos sob o nome de razão. Há seres assim, irremediavelmente
unos, incapazes de isolar partes dentro do seu próprio corpo e de as estruturar
como castelos autónomos e armados.
O comum dos mortais reage à queda de uma das suas
praças-fortes redobrando o armamento da outra. Os monumentos espalhados pelas
cidades evocam os que levaram esta técnica aos limites da perfeição humana. Em
menor ou maior grau, quase todos recebemos no sangue uma capacidade de
separação interna que nos habilita para as obras da sobrevivência. Cláudia não
sabia dessa distinção nem de distinção nenhuma. Deixava correr os dias e
precisava do espelho para se entender como peça solta. As inquietações da
literatura faziam-na rir porque lhe pareciam artificiais. A beleza e a ausência
de imaginação punham-lhe laivos de mulher fatal. Desde que Ricardo Luz a
elegera rainha ela convencera-se simplesmente disso mesmo: sou uma mulher fatal.
O seu corpo era a tradução perfeita das linhas ideais. Nos dias em que o pai
lhe batia, Cláudia aparecia com uma fita métrica no bolso, para medir a cintura
e as ancas das outras, por vingança. Teresa invejava-a, Isabel admirava-a, e a
fusão destes dois sentimentos criara-lhe uma aura que a tornava segura do mundo. Todos os rapazes
sonhavam, obviamente, com ela. Cláudia via nesse excesso de sonho a prova
física da sua inteira realidade. O cérebro de Cláudia pensava tanto como os
seus braços, o seu estômago ou o seu coração. Formava uma unidade resplandecente.
Nada a podia proteger da fissura sem centro que a mudou de uma só vez, como um
abalo sísmico. Nem lhe viu o rosto. Aliás, Dinis não tinha propriamente o tipo
de semblante que se recordasse. Vira-o já centenas de vezes, de passagem, e não
saberia dizer de que cor eram os olhos do irmão de Isabel Marta. Havia
fotografias de James Dean nas paredes do quarto dele, mas Isabel dizia que o
Dinis nascera velho, porque passava a vida a ir à Gulbenkian ver filmes a preto
e branco, muito antigos. Ou então fechava-se no quarto a ouvir música clássica.
O grupo via-o passar, muito sério, com uma pasta de cabedal na mão, e só não o
hostilizava abertamente por respeito para com Isabel.
Nessa mesma noite, depois do funeral, Cláudia adormeceu a
tentar lembrar-se de um qualquer pormenor visual que a sossegasse, e não
conseguiu mais do que a memória daquele cheiro pesado e quente. Decidiu que a
culpa era do corpo da morta, da chuva sobre a terra, do cansaço dela, e entrou
pelo sono a sonhar com perfumes num rapaz que tinha a cara do namorado dela e
que a beijava doidamente sobre a relva molhada. Mas, reparando melhor, ao fundo
do sonho havia o cemitério, e um ser,
lá muito ao longe, agarrado a uma enorme pedra tumular em forma de ursinho de
peluche. Não se percebia se aquela figura parda metida numa capa de plástico
era homem ou mulher. O ser permanecia imóvel e curvo como um fantoche esquecido
sobre o tempo, e olhava». In Inês Pedrosa, A Instrução dos Amantes, Publicações
dom Quixote, 1997, ISBN 978-972-200-972-0.
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