«(…) Nessa mesma noite, voltaram a brincar às escondidas por
entre os túmulos, no cemitério. Quando saltavam o muro do território sagrado já
não eram senão um feixe de corações estereofónicos; chegavam a temer que os
mortos acordassem a rir às gargalhadas daquela orquestra cardiológica.
Faziam-se muito heróicos. Os rapazes içavam as pequenas que ainda cheiravam ao
quente da cama onde se tinham enfiado todas vestidas. Eram exímias em abrir a
porta da rua sem o mínimo ruído. Treinavam-se a olear dobradiças como a pintar
os olhos, nas horas desertas das casas. Faziam ginástica pelos corredores para
se tornarem leves nesse momento em que eles as tomavam nos braços, sobre o
muro. Teresa às vezes sonhava que estava excessivamente pesada e que o seu par
a abandonava do lado de cá, no chão. Salta, Comanecci!, ordenava-lhe agora o
seu príncipe João, e ela fechou os olhos e voou para o colo dele tonta de
alegria, a acreditar que ele via mesmo nela a aura da estrela romena. Salta,
Comanecci!, repetiu ele, como numa canção, mas Teresa olhou para trás e viu o
corpo de Cláudia ascendendo, radioso, às mãos de João. Teresa decidiu então que
os rapazes se repetem para melhor se ocultarem. João recordara-se de Nadia Comanecci em honra dela. A frase
transbordara da sua viril timidez, e ele apressara-se a banalizá-la para que
ninguém entendesse o que ela queria dizer. E evidentemente, o que a frase
queria dizer era que João amava Teresa. Cláudia nunca atribuiria àquela frase
outro significado que não o literal. Literalmente, o que a frase dizia era: vá
lá, não tenhas medo, sobe!. Eventualmente, em post-scriptum, poderia também
querer dizer: sou tão engraçado, não sou? Mas era só isso. Mesmo que estivesse
apaixonada por João, Cláudia não levaria mais longe aquelas palavras. Mas nunca
lhe passaria pela cabeça apaixonar-se por João. Nem sequer se apaixonara por
Ricardo. Traio-te enquanto te atraio, era o seu lema secreto. Não por uma
especial resolução de infidelidade, mas porque lera nos olhos tristes da mãe
que os homens têm em geral a fatalidade de se prenderem ao desapego. Cláudia
não era capaz de inventar romances e torná-los reais. Não tenho imaginação,
confessava ela, com uma inveja simpática, quando lia os poemas de Teresa. Onde
é que tu vais buscar estas coisas? Depois ria-se: que grande romântica que tu
me saíste! O rosto de Teresa iluminava-se, e começava a pensar na grande
tragédia amorosa que ia criar para si. Cláudia era tão bonita e tão prática que
estava definitivamente arredada desse grandioso destino.
O
jogo tinha regras precisas: sorteava-se a vítima, que contava até trinta para
que os fantasmas corressem a esconder-se atrás das campas. De olhos vendados, a
vítima tinha que procurar, agarrar e nomear o fantasma, sem falar com ele. Todas
as partes do corpo serviam para o jogo; e, uma vez agarrado, o fantasma tinha
que ficar quieto a deixar-se identificar. Se a vítima errasse o nome,
continuaria a sua peregrinação de morto-vivo até ao reconhecimento. Então, o
fantasma revelado tornar-se-ia a próxima vítima humana. Tratava-se de um jogo
muito simples. Ricardo Luz estava atrasado, e os outros hesitavam em jogar sem
ele. Diziam que era chato, que não tinha graça, mas na verdade tinham sobretudo
medo de provocar a ira do deus, porque Cláudia estava ali. Viam-no já atroando
os ares de insultos e acusações temíveis, bramando que o que eles queriam era
pôr as mãos no corpo da rainha, entre outras coisas. As raras zangas de Ricardo
Luz desencadeavam tremores de terra. Sem ele, punham-se a andar à toa, a
irritar-se uns com os outros, a deixar de ter ideias divertidas, a pensar no
mundo. Filipe sussurrava agora meiguices pueris ao ouvido de Isabel. Beijava-a
muito e com muito aparato, como sempre que os outros estavam por perto. Isabel
fechava os olhos e encolhia-se-lhe nos braços para fingir que estavam sozinhos
e que ele continuaria a ser assim extremoso se não houvesse ali mais ninguém. Mas sentia-lhe nos ombros um
perfume horrivelmente alheio. Durante muito tempo Isabel não percebera que odor
era aquele. Até que um dia a criada entrou no quarto e ajoelhou-se ao seu lado
a arrumar as camisas na gaveta. Desde então, Isabel recusava-se a ir a casa de
Filipe quando a criada estava lá. Não suportava a memória do sorriso maternal
que a mulher lhe lançara, acariciando devagar as camisas do namorado dela.
Estava tudo dito, e Isabel calara-se uma vez mais.
Jurara a si própria que o corpo de Filipe nunca retiraria
do seu um perfume parecido. Desinteressou-se do sexo antes mesmo de o conhecer,
por causa de um cheiro a água-de-colónia barata misturada de suores. A
intimidade não podia compadecer-se da desordem dos sentidos. Para Isabel, o
amor pertencia ao reino da absoluta inacção. Filipe podia fazer tudo o que
quisesse, desde que continuasse a preferi-la num só olhar. O resto, os beijos,
as prendas, os chocolates que ele lhe dava, eram legitimações exteriores,
apetites momentâneos, que não tinham mais significado do que os gritos, os
amuos e o tal perfume de criada. Se alguém ousava defendê-la da ocasional
brutalidade do amado, revelava-se feroz: Não te metas. Ninguém tem nada a ver
com isto. Depois fazia-se um grande silêncio. Isabel sabia tornar-se invisível
como ninguém. Teresa passava horas a olhar para ela, meditando no desperdício
de tamanha beleza». In Inês Pedrosa, A Instrução dos Amantes, Publicações dom Quixote,
1997, ISBN 978-972-200-972-0.
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